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19:29 - 17/10/2023
ULTIMA ATUALIZAÇÃO::
A língua alienígena de Wisrah Villefort – Thiago Granai
(S), 2021 @ GUAVA, Brasília. (vista da exposição)

Tratando-se de escrita em obras de arte, há diversas acepções que expressam a relação estética entre o texto e a visualidade. Uma, mais expandida, encontra-se em inscrições textuais que os trabalhos de arte realizam através da linguagem poética. Gestos conceituais, por exemplo, manejam figuras de linguagem e procedimentos alegóricos, produzindo discursos sob operações intertextuais. Uma língua própria ilustra essas operações nos trabalhos de Wisrah Villefort, na forma de uma tradução escrita, criando visibilidade para uma comunicação antes imaterial em suas criações. A escrita é artifício fundamental para a transgressão estética não só entre palavra e imagem, em seu trabalho, como, também, entre imagem e objeto.

 

A produção de Wisrah Villefort incorpora a si uma escrita hieroglífica que parece inscrever uma língua estrangeira à compreensão humana. Mesmo que possam ser identificadas, nessa escrita, algumas correspondências com alfabetos e idiomas conhecidos, ainda não se reconhecem conformidades semânticas ou estruturas gramaticais próprias. Sua grafia floral e ornamental dialoga com a concepção expandida de natureza e ecologia do universo de sua obra, que inclui a cultura e, especialmente, os processos de domesticação nas relações interespécies. Como flores decorativas, os caracteres adornam suas produções visuais e parecem designar-se a uma comunicação estética, em uma lógica tanto representativa, quanto material.

 

Essa escrita apresenta-se como uma outra língua, conforme é exibida, em um primeiro momento, como legenda em seus vídeo-ensaios e em outros trabalhos que se preocupam em deixar traduções do que é dito ou escrito em português e/ou inglês, normalmente. Infiltrada entre línguas conhecidas, ela ocupa um lugar de comunicação para seus possíveis falantes, gerando hipóteses, somente, sobre a quem ou o quê ela é dirigida; ou o quanto ela é uma tradução possível para uma língua inacessível por representações gráficas e convenções simbólicas. É no argumento de SONY GELO (2020), “um vídeo-ensaio em torno dos processos de domesticação baseado num fórum online fictício”, como é descrito nas plataformas em que foi publicado, que Wisrah utiliza tal língua pela primeira vez, em legenda, ao abordar a prótese como ferramenta de domesticação.

 

Em um segundo momento, ela insurge materialmente na produção, ficando independente de traduções de apoio e tomando forma, expansivamente, em outros tipos de trabalho, incluindo os somente textuais. No projeto (S) (2021), por exemplo, a domesticação é também um dos assuntos desenvolvidos, numa exposição instalativa incumbida ao estímulo de diferentes sensações sonoras, com destaque para a emissão ultrassônica de um dispositivo repelente para morcegos e ratos. Incluída, a escrita floral não acompanha algum outro discurso escrito ou falado, como tradução, pois sozinha inscreve-se na parede do espaço expositivo e produz seu próprio enunciado. Ela participa esteticamente da linguagem construída entre os elementos da exposição, assumindo-se como mais um deles, um objeto, e menos como uma representação. Aos poucos, como a prótese, essa escrita confere uma extensão inorgânica ao seu trabalho, em sua linguagem, amputando parte de seu corpo linguístico e o moldando (aludindo ao texto de SONY GELO).

 

O interesse pela prótese relaciona-se com o interesse pela própria materialidade, exercido na relação entre o orgânico e o inorgânico, tensionados entre natureza e tecnologia. A prótese, oferecendo uma extensão para o corpo (ou o sujeito), transforma-o em, também, objeto, ao tornar-se parte de sua natureza, nesta correlação que transgride a suposta divisão ontológica entre esses elementos. Um “perigoso suplemento”, como o que Derrida1 identifica na natureza da escrita, com seu mesmo duplo gesto de acréscimo e substituição. Pois o suplemento, sendo escrita ou prótese, um acessório da cultura, atende uma espécie de carência “natural”, numa contradição com a própria natureza, que supõe-se completa, excedendo-a e, então, substituindo-a. Incitando perigo, como aponta o filósofo, tanto para a natureza, quanto para a razão, em suas delimitações conceituais modernas, pois a destruição ou a substituição da natureza torna-se paradoxalmente natural e conscientemente desejada; se a escrita substitui a fala, ou a prótese uma parte do corpo, substitui-se a coisa pela representação e questiona-se o valor da presença como determinação do ser, ou a própria ontologia e epistemologia.

 

SONY GELO, 2020 (video still)

A escrita, entendida como prótese, e, portanto, como objeto, é assim explorada por Wisrah. Guiade, propositadamente, pelo conceito de escritura de Derrida, elu concebe a escrita, da mesma forma, em seu trabalho: como ferramenta de desconstrução da tradição do pensamento ocidental de primazia pela razão. Para Derrida, nesta tradição, a presença fundamenta o ser em detrimento da ausência, e o pensamento moderno constrói-se sobre oposições conceituais binárias que refletem essa relação. A escrita, então, em sua materialidade, opõe-se à fala e à sua suposta presença, sendo exterior ao próprio pensamento, estrangeira, neste sentido, para a natureza da linguagem, onde localizar-se-ia a razão. Ela, como um “perigoso suplemento”, apresenta uma inconsistência sobre tudo o que é definido pela metafísica ocidental, pois, apesar de exterior ao pensamento, também é interior, já que a própria fala, assim como o pensamento, imbrica-se no conceito de escritura, quando notamos que ela mesma não só produz (ou poder-se-ia dizer que, na verdade, é) um signo, como este signo não tem relação direta com seu significado, já que sua conexão com o referente nunca é, de fato, natural, mas arbitrária.

 

Dessa forma, os caracteres florais são signos em seu trabalho. A perfeita harmonia das letras como flores com um universo onde a ideia de natureza é expandida para tudo o que existe, junto à ideia de objeto e tecnologia, corresponde a essa pretendida desconstrução da oposição entre natural e artificial, pela revelação do paradoxo de um suplemento natural. Wisrah notabiliza a materialidade das coisas sem deixar de contemplar suas características simbólicas. A complexidade de seu trabalho está no reconhecimento de que as coisas, em sua materialidade, falam por si mesmas.

 

À comunicação por uma comunidade material refere-se a linguagem das coisas descrita por Walter Benjamin2. Em sua reflexão metafísica sobre a origem da linguagem, discrimina-se e hierarquiza-se a linguagem humana da linguagem em geral, essa que pertence às coisas, à natureza e aos domínios técnicos — a tudo que existe. O homem é posto à parte da natureza por falar em linguagem dita mais perfeita, pois expressa-se sonoramente em uma comunidade imaterial e de forma nomeadora, estabelecendo uma relação com a criação divina pelo conhecimento. A natureza é muda, concebida pela linguagem divina, mas sujeita e pendente de nomeação, a fim de que seja reconhecida. É pela própria matéria que ela expressa sua essência espiritual, essa como resquício da criação pela linguagem, sob um entendimento teológico do autor. Ainda que, por essa perspectiva, se produza uma distinção entre homem e natureza, o nível de linguagem da natureza não se distingue do das outras coisas que fazem parte do mundo cultural. A lâmpada se comunica como a raposa ou a montanha, em um exemplo dado.

 

No entanto, Wisrah Villefort valoriza, na linguagem das coisas, a matéria e sua mudez para além dessa hierarquia. Em (S), elu propõe-nos que façamos o mesmo. A exposição foi dividida entre o site da galeria digital GUAVA e a vitrine da galeria deCurators, em Brasília, em uma colaboração entre os dois espaços. Hospedado no site, um trabalho sonoro: uma compilação de diversos áudios encontrados que giram em torno de características do morcego, ressaltando sua habilidade de ecolocalização. Na vitrine, uma instalação composta por um carpete longo demais para as dimensões do chão, ficando uma sobra dobrada sobre ele; uma coleção de revistas de moda brasileiras encapadas por folhas de molde com prendedores de inox e marcadas com post-its nas páginas em que se identifica pele animal; o repelente sonoro de morcegos e ratos conectado a um adaptador de tomada universal na função “Europa” e conectado na tomada; as paredes brancas e luz fria, forte e difusa como trabalhos parte da exposição; o painel luminoso da galeria propositalmente desligado; e a inscrição floral na parede, em adesivo vinílico.

 

IMAGEM MILAGRE, 2021 @ OLHÃO, São Paulo.

Configurada como um ambiente doméstico, asséptico e livre de presença animal, este também livre de presença humana, isolado pelo vidro da vitrine, como uma cenografia em que a presença de cada objeto oferece uma pista sobre a cena apresentada. Os objetos fazem-nos observar como, sozinhos, agem e interagem. Existe um ruído constante, mas ultrassônico (frequência acima da sensibilidade humana), de forma que se torna uma violência apenas às espécies determinadas pelo dispositivo na tomada. No entanto, essa violência dissemina-se entre todos os outros objetos e acaba por dirigir-se também aos espectadores, como crítica institucional. A luz, as paredes brancas e o carpete acionam o repertório visual de ambientes institucionais como museus e galerias, que não só repelem animais, mas também humanos. A inscrição floral na parede pode, então, assemelhar-se com os textos em plotagem de exposições, normalmente assinados pela curadoria e, ainda, indecifráveis. A familiaridade e o conforto de um ambiente doméstico provocados pela pilha de revistas sobre o carpete destinam-se apenas a um grupo elitizado de pessoas, habituado à convivência com este repertório visual. Os objetos parecem, por vontade própria, salientar contingências sobre as expectativas de uma exposição de arte, mostrando-se todos presentes. Tudo parece muito convencional e também deslocado, desregulado. A exibição 24/7, possível por estar em vitrine, relembra a constante presença dos objetos no espaço, o constante ruído que não somos capazes de escutar, fazendo-nos questionar sobre o que mais não estamos ouvindo e qual é a relação da violência com o silêncio.

 

Nota-se que essa língua floral é impronunciável, sempre escrita e nunca falada, como tudo em (S). Os parênteses no título da exposição o tornam impronunciável; o ultrassom não pode ser reproduzido pela fala; o painel que, normalmente, apresenta a exposição, não o faz. A experiência proposta força-nos ao silêncio para que nos permitamos ouvir em vez de falar. Som e Silêncio parecem estar simbolizados pela mesma letra neste título que talvez represente o silêncio apenas da fala, e não de todo som. Da mesma forma como o ultrassom é utilizado para formar imagens no corpo gestante, aqui ele é um estímulo para os sentidos. Os trabalhos possuem características sonoras, ainda que não possam ser ouvidos. Demandam atenção e outra postura, mais próxima do chão, para um outro olhar.

 

A inclusão da escrita floral na produção de Wisrah revela, nela, a importância da silenciosa linguagem material — e da materialidade da linguagem —, distribuída entre os objetos e provocando a própria noção de escrita. Esta se faz, para além dos caracteres florais, nas inscrições e ações que realizam os objetos quando se relacionam, inscrevendo, a partir disso, seus significados. Esse interesse linguístico explica as inquietações da produção d’ artista pela ordem conceitual. Se a maior parte do trabalho de Wisrah é feito por apropriação, são as operações linguísticas que determinam as suas intenções e estratégias poéticas. São inscritos textos dentro de outros, combinando diversas figuras de linguagem.

 

Em (S), são muitas as referências aos gestos conceituais de crítica institucional dos anos 60, podendo localizá-las em trabalhos como de Marcel Broodthaers ou Michael Asher, pela relação direta com a herança histórica da apropriação autorreferencial do ready-made, junto à noção da arte minimal, com apropriação do próprio espaço e elementos da galeria. Os intertextos produzidos buscam não só constituir uma crítica institucional através da história da arte, como também situar suas próprias e conhecidas contradições, encarando a lógica da crítica feita de dentro da instituição. Compreende-se que, na linguagem, Wisrah articula operações conceituais entre as oposições binárias e outras configurações modernas que inquietam sua pesquisa, guiada, muitas vezes, pelo seu conceito de prótese. Mas identifica-se um custo para que todos os elementos de seu trabalho, tão materialmente distintos, se comuniquem, e que talvez sua escrita floral busque ilustrar: a tradução.

 

A tradução Benjaminiana é atrelada à hieraquia da linguagem, implicada na ideia de uma tentativa de aproximação ao conhecimento divino. Ou seja, a linguagem das coisas acessa a linguagem humana pela tradução, somente, na tentativa de aproximação à língua nomeadora dada por Deus, sujeita ao poder hierárquico já configurado. Fazer com que as coisas possam ser ouvidas é um desafio que Wisrah topa encarar, ao enfrentar essa estrutura. Mas outra ideia de tradução parece melhor apropriada, dada a disposição d’artista a observar atentamente os caminhos e encontros dos objetos em sua preocupação ecológica, de forma a criar um meio de igualdade para a comunicação entre elementos de naturezas tão distintas. Seguindo a Sociologia da Tradução, outro nome para a Teoria Ator-Rede3, elementos não humanos participam de formações de grupos com elementos humanos e compartilham de agência nestas redes. A interação entre objetos é, então, reconhecida fora de dimensões subjetivas e lida como estruturante para as ações observadas. A tradução é a negociação compreendida na associação entre diversos atores, humanos e não humanos, para que se relacionem. Admitindo a relação de poder que engendra o problema de tradução, o achatamento ontológico que a sociologia da tradução faz permite uma transação mais justa entre as comunidades material e imaterial.

 

São traduções o que se encontra ao longo de sua produção, nas interações rastreadas dos objetos quando reconhecido seu protagonismo. O que podemos observar em Mercado Livre (2017—), no registro do percurso de imagens em marketplaces do Sul Global, em EEE (2021), no registro em tempo real de transporte de embarcações ao redor do planeta, e, entre outros, em (S), na combinação de elementos que também registram uma cartografia por trás da estrutura apresentada: a tomada da vitrine definida pelo modelo europeu, evidenciado pelo adaptador universal; a exploração animal identificada nas revistas de moda brasileiras por influência de tendências do Norte Global; a escolha sobre a luz, parede e chão da galeria como reprodução de um projeto estabelecido de exibição de trabalhos de arte; o registro de diferentes línguas humanas no trabalho sonoro hospedado na GUAVA, tal qual uma transmissão de rádio, como possível tradução do som de ecolocalização do morcego, identificando a geografia de sua presença.

1 Ver Gramatologia, de Jacques Derrida.

2 Ver Sobre a linguagem em geral e a linguagem dos homens, de Walter Benjamin.

3 A teoria Ator-Rede, também chamada de Sociologia das Associações ou Sociologia da Tradução é concebida entre estudos de Bruno Latour, John Law e Michel Callon (entre outros). Ver Reagregando o social: uma introdução à teoria ator-rede, de Bruno Latour.

 

Wisrah Villefort é artista e participou do Ciclo I do Pivô Pesquisa em 2020.

Thiago Granai é artista e curou a exposição individual de Wisrah Villefort na GUAVA, em Brasília, com apoio da Lei Aldir Blanc.

 

 

GO OUTSIDE. SHUT THE DOOR.

“Volte para conferir se a porta está trancada, deixe as janelas abertas. Conte quantas linhas retas você consegue enxergar no trajeto de volta.”

Wisrah Villefort

 

[Como forma dar continuidade às nossas estratégias oblíquas que guiam a programação de 2023, convidamos Wisrah Villefort a tirar uma carta do baralho de Brian Eno. ]

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