(ela entra em cena e se dirige ao centro do palco. há um abajur pequeno de lâmpada amarela)
como seria contar uma história de quem se sabe apaixonado? o charme impreciso da
fantasia. lembrei da irina do tchekhov acreditando que encontraria o verdadeiro amor em
moscou. (balança a cabeça) ficou viúva antes mesmo de se casar com um homem que não amava.
ela nunca
ela nunca voltou à moscou. fico pensando se seria esse o destino: esperar para então enfim
amar alguém. o outro.
(ela começa a acender e apagar um abajur, como se fosse um tique nervoso)
quando tinha uns dezessete anos adorava dançar joy division numa festa que acontecia às
sextas. meu corpo a toda prova de uma pista de dança subterrânea num lugar que
provavelmente já não existe mais em são paulo. love will tear us apart (dá com os ombros).
(ela para de acender e apagar o abajur)
são curiosas as portas que insistimos abrir. o que colocamos constantemente pra ser presença na sala vazia: a repetição.
o familiar em você era ir até a cozinha porque esqueci o abajur da sala ligado, a luz amarela tocava todo o espaço e tudo parecia menor. eu parecia menor também. você me esperava
na cama, mas eu continuava o caminho até os fundos do apartamento me avizinhando a própria vizinhança, que de madrugada dormia, e meu sono ausente parecia invadir a casa
inteira pra torná-la então parte do sonho.
a mania de espiar a janela dos outros; dali eu só enxergava as roupas penduradas, às vezes umas caixas de pizza que iriam para o lixo de manhã, alguém fumando desavisadamente.
e eu espiava.
me pegava pensando: e se um dos apartamentos pegasse fogo? a gente poderia ter sido um casal do filme do wong kar-wai. você dirige a moto e eu encosto (faz gesto com as mãos) a lateral do meu rosto no seu pescoço até o seu ombro esquerdo.
eu gostava de olhar suas mãos de perto, observar como você descascava uma cebola.
sabe, eu
eu não quero ser a que espera eternamente por moscou ou por um amor, talvez esse seja um grande medo. não, medo não. um baita desespero. tampouco ser como aquela personagem do tennessee presa a uma estátua de anjo de pedra ou a covarde que esconde uma tatuagem que fez com alguém que nem tá mais aqui.
(silêncio)
por que exatamente nos apaixonamos? essa crença absurda de que temos algum tipo de influência no destino do outro. destino já é absurdo em si.
(começa cantarolar pra si)
meu coração não se cansa / de ter esperança / de um dia ser tudo o que quer
meu coração de criança / não é só a lembrança / de um vulto feliz de mulher / que passou
por meus sonhos (segue cantarolando pra si cada vez mais baixo)
sem dizer adeus / e fez dos olhos meus / um chorar mais sem fim
meu coração vagabundo / quer guardar o mundo / em mim
ultimamente ando em círculos com o que escrevo, não dá pra ser um diário mal acabado e
infantil. não dá. não era isso que eu queria.
eu queria que se dessem conta de algo aí que nem sabiam que estava
aí.
por que exatamente escrevo? endereçar com certeza. destinatário tem a ver com destino.
escrever cartas informativas às tragédias gregas, avisar medeia: ei, você vai matar seu
marido porque ele te traiu. sua ira vai matar seus filhos. você vai acabar ateando fogo em
tudo.
não quero ser o oráculo, quero ser quem deseja.
e isso era pra ser uma história de amor.
são curiosas as portas que insistimos abrir. percebo uma porta interditada.
não sei se falo de mim como se não estivesse aqui.
abrir as mãos e encontrar
o vazio
o desejo
(na contraluz ela dança com lençol sobre si)
(apagam-se as luzes. escuro total)
A biblioteca do Pivô recebeu, em junho de 2023, a leitura dramática do texto dormir comigo ou das chamas salvaremos o fogo, de Naiade Margonar.
A leitura contou com a cenografia de Maju Camargo, a assistência de Lucas Cobucci e a projeção de Nicholas de Lucena. Participam do espetáculo Ana Lancman, Bibiana Espíndola, Camila Barros, Marcella Sneider, Ivana Wonder e Veridiana Mana. O texto é de Naiade Margonar.