No segundo episódio de “não é SIMPLES (há cruzamentos)” o podcast desenvolvido por Adriano Machado e Kauam Pereira durante o Ciclo III / Beck’s do Pivô Pesquisa 2020, os artistas leem trechos de seus livros favoritos, Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez e Correspondência Completa de Ana Cristina Cesar. Como um audiobook do infinito, o gesto de ler um para o outro faz uso da voz, do chiado do microfone e do silêncio, e, como um rádio velho, promove uma troca entre a despretensão e a conexão. O podcast é novamente fruto das trocas de áudios por aplicativo.
PS: Ouça com fones de ouvido.
segredo postal enviesado
a cara que me sorri
me beija de confete
confortável toma a minha mão
e damos a ensaiar uma letra “A” gigante
(coisa qualquer assim de lição)
sabemos que o mundo inventado de feijão e arroz
produz gases e sorrisos
o substrato humano da lâmpada neon
tempo de boi e terreno livre
as barras da calça cosidas com fita adesiva
só quem sabe papel de bala fininho
tem esse retrato
sorri de amarelo
espiga de milho grande
nesse tempo em que no dia de oxóssi nos forçamos a lembrar do passado
vasos de barro são suficientes
[sonho 01]
eu, chico, rodrigo e um rapaz nadando em águas sujas, em algum momento eu subo numa balaustrada enquanto chico faz uma pirueta linda (parece que o bairro inteiro está submerso), rodrigo me mostra mais um lixo que ele achou no rio: uma corda de fechar roupões. o rapaz começa a comentar sobre como é massa poder nadar naquela profundidade (a água nos cobria até o pescoço).
música de amor:
toca a campainha da minha cabeça
exatamente às dezessete horas e dezessete minutos
desço as escadas com a roupa aberta
o chinelo parece não encaixar no pé esquerdo
tropeço e ao invés de saliências de concreto
são seus olhos a pedra no caminho
pedra água peixe polvo
o sal da vida é na verdade um líquido doce
como uma oxum displicente a cruzar destinos
[sonho 02]
trauma: fratura óssea que jamais se cola, como o fêmur de Maria Jovelina, os pés idênticos aos pés de Marilena, Marilúcia, Marilourdes e Bernadete. Antunes-avô há muito havia morrido mas comprou para Ela TERRA antes de partir. aquela geografia não era piripiri, com suas passarinhas e praias de esgoto a céu aberto.
na dimensão do segredo
pousa uma forma secreta
vegetal e animal
coisa planta
cacto e peito
e criança
redobrado o esforço de compreensão
mas ás 15:42 eram poucos os vestígios
sêmem e serpente
sorriso sopapo
sóis e salivas
e saudades
não havia hospitais que computassem
enfermidades tão tão específicas
[sonho 03]
segunda-feira. a gente que tem prótese, Nicole, a gente sente porque começa a lidar com a diferença de forma muito primitiva. coisa abjeta, proto romance – pergunta dura. processo contínuo de desencanto. a ciranda tristíssima da violência decantada, modo de vida inviável. nostalgia de paixão por tudo: de um passado da cidade que eu escolhi amar. as dissidências todas embaralhadas num jogo de cartas mitológico, falha do sistema. exercício constante. eu signifiquei tudo ao redor, esse cinzeiro que eu vi tantas vezes. a vida é uma grande fetichista. a visão do fundo do poço a distância é um ponto, oásis de paz. escolher por mim é seguir em frente sem olhar pra trás. aterrar é uma missão. Você não acha que a distância e a correspondência alimentam uma áurea?