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19:28 - 17/10/2023
ULTIMA ATUALIZAÇÃO::
Notas sobre um protótipo cósmico – Luiza Crosman

1. Um dia em agosto de 2019, às 14 horas, o céu de São Paulo ficou escuro e avermelhado. Parecia apocalíptico, como se o céu fosse o portador de más notícias. E era mesmo. A vermelhidão era fumaça de atividade criminosa a 1000 km de distância. O agronegócio brasileiro estava queimando o Pantanal – um dos últimos e mais importantes ecossistemas e reservas ambientais do mundo – para poder plantar mais soja e criar gado. Normalmente, não consideramos o céu como o meio imediato para as atividades terrestres, mas, como o céu revela a bioquímica da atmosfera, talvez devêssemos considerar.

2. Uma superfície planetária é formada por várias camadas. Fluxos complexos, dinâmicas emergentes e efeitos em cascata que ocorrem em escalas macro e micro. Ou seja, é uma superfície feita de partículas e padrões. As partículas são unidades básicas de matéria e/ou energia. Desde partículas subatômicas, como os elétrons, até partículas grandes o suficiente para serem vistas, como poeira flutuando na luz do sol. Padrões são arranjos específicos com incidência frequente ou distribuída no espaço ou no tempo.

3. Linhas de territórios.
Linhas de violência.
Linhas de fuga.
Linhas que nos informam sobre nosso destino.
Linhas de segurança.
Linhas que medem.
Linhas de código.

4. A composição química do céu é uma linguagem de padrões feitos por partículas no tempo. Como observa o físico e engenheiro climático David Keith em seu livro “A case for climate engineering” (MIT Press, 2013): “O carbono lança uma longa sombra sobre o futuro: mil anos depois de pararmos de bombear carbono no ar, o aquecimento ainda será cerca de metade do que era no dia em que paramos”. O tempo é urgente. O céu que temos agora, com alta concentração de dióxido de carbono na atmosfera, foi herdado por décadas de monopólio do setor de combustíveis fósseis. Agir agora significa tanto evitar a transferência desse risco para as gerações futuras quanto limitar os danos que as gerações passadas impuseram no presente. Portanto, precisamos de soluções de curto e longo prazo. A melhor maneira de romper um monopólio é com um kit de ferramentas complexo e dinâmico. As soluções de curto e longo prazo devem ser uma combinação de mudanças técnicas, econômicas e sociais, como: consumir socialmente menos e com mais eficiência; descarbonizar a economia (desinvestindo no setor de combustíveis fósseis e removendo o carbono que já está na atmosfera com tecnologias de captura e seu armazenamento); criar uma rede elétrica mais robusta com mais investimentos em energia de baixa emissão (solar, eólica, nuclear); diminuir as consequências do efeito estufa com táticas de geoengenharia solar; proteger e fornecer redes de segurança para as pessoas em áreas de risco climático etc.

5. Uma revisão de perspectiva: se o céu é uma extensão das atividades no solo, ele está sempre sendo feito e refeito. Ou seja, ele é sempre artificial (não como falso, mas como uma entidade sintética; sempre em conjunto com o humano, em sua composição química, projeções espirituais, observações astronômicas).

6. O que chamamos de crise e risco quando nos referimos à emergência climática se deve à atual taxa de mudança dos padrões de temperatura, precipitação e composição atmosférica. Esses padrões estão se tornando mais erráticos, afetando, por exemplo, os hidrociclos. Entretanto, isso não significa que o clima atual seja “uma condição ideal mágica para a vida” (como diz David Keith). Talvez existam climas melhores por aí. Em vez de abandonar a manipulação do clima, o que devemos buscar é sair do modo de crise.

7. Tenho escrito sobre a necessidade de se ter um novo índice universal, separado das atuais estruturas coloniais, ocidentais e patriarcais,  sendo por sua vez, projetado como uma forma de multiplicidade constante. Esse novo índice universal não seria algo com o qual todas as pessoas do planeta devessem concordar. Um índice universal não tem a ver com concordância total e completa. Trata-se de forjar possibilidades constantes e múltiplas. Ele é considerado universal porque daria as condições para que cada pessoa no planeta existisse plenamente com e dentro de seus próprios contextos culturais, sociais e locais sem perder sua participação no planetário.

8. Outra revisão de perspectiva: a crise climática exige novos modelos de coletividade em escala que vão além da geopolítica da soberania do Estado-nação. No entanto, isso também significa encontrar novos símbolos/índices para essa coletividade fora daqueles usados pelos estados-nação.

9. Toda cultura humana, quando olha para o céu, está se engajando em um processo de criação de mundo. É possível encontrar em muitos livros, filmes e histórias o céu como uma entidade que causa admiração. Suas noites estreladas são inspiradoras. Seu aspecto etéreo é misterioso, ao mesmo tempo em que sua solidez é protetora. Misturamos narrativas e informações para dar sentido a eventos, como, por exemplo, as ocorrências meteorológicas. Ao mesmo tempo, todos nós compartilhamos o mesmo céu, a mesma atmosfera. Os eventos atmosféricos são interdependentes e não podem ser vistos de forma desconectada. Eles são múltiplos ao mesmo tempo agem como uma condição universal. Poderia o céu ser um índice universal?

10. Apresentação de CELESTE: um planeta que se orienta por seu céu e condições atmosféricas, em vez de pelos seus territórios e recursos materiais. Orientação que  descentraliza a escala humana, concentrando-se em partículas atmosféricas e fenômenos cósmicos. Como os padrões do céu nos informam sobre o estado atual do mundo? Como as técnicas de observação são instrumentos de especulação e controle narrativo? Como criar narrativas com base na relação entre a escala macro e a micro? Qual é a história que as partículas e os padrões estão nos contando? Nós partimos daí.

11. Não mais olhar para o céu, mas olhar com o céu.

12. “Estudar o mundo físico requer o confronto com o mundo social”, escreve a astrofísica e ativista Chanda Prescod-Weinstein em seu livro “The Disordered Cosmos” (PublicAffairs, 2021) sobre como a ciência se baseia e é usada por parâmetros e metodologias racistas, universalistas e coloniais, tornando extremamente difícil, senão impossível, promover visões de mundo diferentes. Um dos principais desafios para lidar com a crise climática é sua característica de ser, ao mesmo tempo, global e local. Trata-se de uma crise planetária com consequências localizadas. Esse desafio exige uma nova maneira de pensar sobre a escala planetária e como mobilizar a coletividade sem cair em perspectivas coloniais de um universal que só representa a civilização ocidental. Como a descentralização dessa perspectiva colonial e novas soluções técnicas podem dar início a novas dinâmicas de poder? Algumas soluções locais podem criar rupturas globais, ao fazer uso de novas tecnologias (como a geoengenharia solar e a energia nuclear). Ou ainda, redesenhar as fronteiras geopolíticas com novas formas de governança territorial, como a demarcação e soberania de territórios indígenas (que comprovadamente foram os únicos territórios a não sofrer tamanha degradação nas últimas décadas).

13. Métricas indexadas tornam-se ferramentas dinâmicas e dimensionais de compartilhamento de informações no tempo. Elas funcionam como uma espécie de storytelling, estabelecendo narrativas. Um universal progressivo teria de ser construído de forma multidimensional, escalonável e indexado em processos de recursividade temporal e espacial, garantindo sua atualização e qualidade de agir em rede. Essa qualidade de rede da indexação de um universal talvez seja uma das áreas que requerem mais atenção, pois é a partir dela que os efeitos complexos e os choques resultantes com a realidade aparecerão e como, lentamente, será possível criar uma contra-hegemonia. Justamente porque um único índice não possui resolução suficiente para transmitir uma imagem clara que ele é por definição plural. Índices podem ser definidos como várias informações que precisam ser entrelaçadas em uma narrativa mais complexa para poder criar sentido.

 

 

14. Uma certeza cósmica: para ver, você precisa do comprimento de onda certo.

15. Não há como escapar do destino inflexível, mas não estamos buscando a vida eterna. Em vez disso, buscamos o potencial da vida. Buscamos as condições que tornam a vida possível.

Luiza Crosman

 

* Estas notas foram escritas entre a pesquisa e produção do vídeo Átropos Sky, durante minha residência no MediaLab/MATADERO, Madrid, em maio de 2022, e a exposição CELESTE, na Gomide&co, São Paulo, em agosto de 2022.



“Responder a essa pergunta é participar do mundo.”

 

[Como forma dar continuidade às nossas estratégias oblíquas que guiam a programação de 2023, convidamos Luiza Crosman a tirar uma carta do baralho de Brian Eno. ]

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