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19:36 - 17/10/2023
ULTIMA ATUALIZAÇÃO::
Pivô entrevista Clarissa Diniz

A convite do Pivô, a curadora, escritora e professora Clarissa Diniz está realizando o acompanhamento curatorial do Ciclo II do Pivô Pesquisa 2020. O programa acontece em modo remoto até 21 de setembro, reunindo um grupo de oito artistas. Em um período de 12 semanas, Ana Almeida, Bruna Kury, Christian Salablanca Díaz, Érica Storer de Araújo, Iagor Peres, Pepi Lemes, Vita Evangelista e Yhuri Cruz buscarão “desdobrar as contingências do Covid-19 em alguma forma de potência”, nas palavras da curadora. Clarissa é nascida no Recife, mas atualmente vive no Rio de Janeiro, onde atua como professora da Escola de Artes Visuais do Parque Lage e realiza doutorado em antropologia pela UFRJ. Em sua trajetória profissional, participou da publicação de inúmeros livros, catálogos e revistas (foi editora da Tatuí, entre 2006 e 2015) e projetos curatoriais e expositivos, entre eles, a recente exposição coletiva À Nordeste, cocurada com Bitu Cassundé e Marcelo Campos, no Sesc 24 de Maio, em 2019.

 

Leo Felipe: Comente um pouco sobre os critérios que guiaram a seleção de artistas para este ciclo.

 

Clarissa Diniz: No geral, o processo de seleção foi orientado pelo desejo de desdobrar as contingências do Covid-19 em alguma forma de potência. Pois, se por um lado a pandemia interrompe a presença, por outro ela pode viabilizar aparições – ainda que porventura breves e desconfortáveis – para o que costuma estar ausente. Desse modo, dado o caráter remoto da residência, buscamos favorecer o descentramento paulista já em curso no Pivô Pesquisa, convocando presenças de outras freguesias geopolíticas e epistemológicas. Assim como a minha própria participação no programa só se tornou viável por se dar à distância, temos tido o privilégio de contar com pessoas situadas para além de São Paulo sem que, para se fazerem presentes, elas tenham que abdicar de seus lugares e redes de cuidado nesse momento tão doloroso.

Também nos pareceu relevante compreender que o espaço de visibilidade e de legitimação proporcionado pelo Pivô deveria ser prioritariamente reservado a artistas cujo acesso a instâncias de poder é dificultado por razões históricas, estruturais, institucionais. Além de ser um espaço de formação e de interlocução entre artistas, como o Pivô Pesquisa colabora para ampliar a circulação das obras de seus participantes, entendemos que durante a pandemia essa capacidade de inserção deveria ser sociopoliticamente endereçada. Por isso, foram preteridas candidaturas de artistas cujas trajetórias já vêm acontecendo entre instituições e outros espaços de maior visibilidade, privilegiando, por outro lado, artistas que já há algum tempo circulam fora do campo hegemônico da arte ou que estão iniciando suas caminhadas por aqui.

Como as candidaturas haviam sido originalmente elaboradas para a versão presencial do Pivô Pesquisa, na seleção também nos mantivemos atentas às vocações e aberturas que alguns projetos pareciam ter para desenvolver-se em outras – e insuspeitas – direções. Em razão disso, optamos por não selecionar artistas que já haviam planejado o que fariam durante a residência, privilegiando, ao contrário, os processos de pesquisa que se demonstraram generosamente inconclusos e responsavelmente descompromissados com a ideia de resultado. O fizemos com a deliberada intenção de esvaziar os riscos de transformar essa residência remota numa espécie de programa de coaching online para artistas – perspectiva que me dá gastura.

Por fim, e na mesma direção, imersos no contexto de um mundo interditado, buscamos valorizar poéticas solidárias com dimensões disfóricas da vida. Como estamos assimetricamente compartilhando a experiência apocalíptica de uma pandemia, julgamos que seria importante formar uma coletividade lastreada por pesquisas e pessoas que, ao invés de nutrir imaginários nostálgicos ou fetichistas tanto em relação ao “passado” quanto ao “futuro” do mundo, de alguma maneira estivessem desenvolvendo poéticas que encaram e se lançam em suas desventuras, violências, espectralidades, dissidências, instabilidades, ansiedades.

Artistas residentes recebem as boas vindas ao Pivô Pesquisa 2020 Ciclo II

LF: Uma residência artística implica no deslocamento para outros contextos e a relação com um determinado espaço. No caso da residência remota, este espaço é o território online, com suas características específicas, mas o fator deslocamento é perdido. O que se pode ganhar em contrapartida?

 

CD: Além de ser espacial, a clausura à qual estamos submetidos é social e afetiva: com os corpos apartados, também parte expressiva de nossas trocas e convivências se distancia. No caso da arte, temos experimentado a rarefação dos diálogos com públicos diversos – tradicionalmente mediados por instituições como museus ou escolas, dentre outras – em prol das coreografias algorítmicas das relações propiciadas pela internet e redes sociais. Em que pesem os enriquecedores e imprevisíveis atravessamentos que a internet pode gerar, não é difícil notar que a auto-representação performada por cada artista (dentre outros profissionais) nas redes sociais adquire proporções inéditas, pois os perfis se tornam quase que forçosamente não apenas obras, como também suas formas de publicização, legitimação e comercialização. Não à toa, quatro meses depois do início do Covid-19 no Brasil, podemos testemunhar artistas compartilhando publicamente as ansiedades e angústias produzidas por esse processo de hiperexposição que paradoxalmente acompanha o isolamento.

Nesse contexto, o deslocamento que nos pareceu não só possível, como também desejável, foi um convite para que, durante o Pivô Pesquisa, cada participante não precisasse exclusivamente dedicar-se a si a mesmo. Na tentativa de aliviar um pouco a saturação de si que muitos de nós têm experimentado, a despeito das limitações das relações virtuais, propusemos um espaço-tempo de interlocuções que tomam como central não somente o processo de dar-se a conhecer mas, com igual importância, o de mergulhar no outro.

Por isso, ao invés de cada artista apresentar e responder pelo seu trabalho por conta própria, estamos experimentando processos de trocas entre duplas que, por sua vez, elaboram os momentos coletivos de compartilhamento de reflexões sobre as pesquisas de cada participante. Ao invés de “leituras de portfólio” conduzidas coletivamente, forjamos uma experiência de público diante da qual cada artista que tem sua obra discutida é convidade não a ocupar o lugar de fala e de autoridade sobre sua trajetória, mas a vivenciar o privilégio da escuta e do testemunho de como sua obra age no mundo através das pessoas ali dispostas a implicar-se com ela.

Durante a residência, gostaríamos de tentar provocar alguma – ainda que mínima – inflexão na experiência da clausura social que tende a colocar cada um no seu quadrado, misturando um pouco mais os nossos ângulos, desenhando uma geometria mais relacional. Esse é o deslocamento que temos como horizonte.

 

LF: Você propôs uma metodologia epistolar para dar início ao programa: residentes e curadora trocaram cartas entre si, contando um pouco de suas vidas. Qual a razão da escolha desse procedimento?

 

CD: Como estamos ficando cada vez mais saturados das conversas mediadas pelos zooms da vida, em paralelo às trocas que se dão via chamadas de vídeo, inauguramos outro território de comunicação. Propus que elaborássemos algumas cartas ao longo dos próximos meses, compartilhando memórias e ideias de modos menos imediatistas, capazes de operar noutro regime de tempo que não o da responsividade imediata (e cada vez mais acelerada) das relações digitais.

O ponto de partida para essa conversa epistolar foi a vida – e não a arte – numa tentativa de afirmar a criação e a força do sensível para além da violência das circunscrições do campo da arte. Curioso foi ver que rapidamente as cartas que deram início a esse ciclo do Pivô Pesquisa foram enriquecidas de outras, celestes: uma espontânea troca de mapas astrais entre os participantes da residência que, em paralelo aos processos de interlocução em curso, revelou identificações deveras surpreendentes.

 

LF: Do que trata sua pesquisa de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro? O que você acha que acontecerá com a universidade pública no atual cenário político e econômico? 

 

CD: O projeto é sobre arte e violência epistêmica, buscando refletir acerca dos modos pelos quais a prática artística e seu hegemônico campo social, econômico e político engendra processos violentos em relação a outras ontologias, saberes, estéticas, éticas, perspectivas. Em especial, tenho pesquisado as violências produzidas pela arte brasileira que se interessa por “culturas indígenas”, por vezes afetando os próprios indivíduos ou povos com os quais esses artistas não-indígenas acreditam estar se aliando. Em várias dimensões, essa é uma pesquisa autorreflexiva, uma vez que tem o desejo de colaborar com a identificação e a compreensão dos limites, das encruzilhadas e das contradições das práticas historicamente brancas, coloniais e elitistas a que chamamos de arte.

Quanto ao futuro da universidade pública… Sou péssima em futurologia, mas espero, mesmo e muito, que a universidade possa mais uma vez comprovar sua importância científica, social, política, humana, econômica – dentre tantas – em meio a essa pandemia. Que, na contramão de todo sucateamento e desmonte, o Brasil entenda que a universidade verdadeiramente pública, diversa e acessível é fundamental para a construção de um país menos desigual.

LF: Sua cidade natal, Recife, é uma referência em termos de produção cultural, com uma rica tradição de cultura popular e uma cena contemporânea de música, artes visuais, cinema e literatura desafiadora e vibrante. É viável produzir arte fora do Sudeste? Como vai a cena – ou as cenas – em Recife atualmente?

 

CD: Como a criação é uma força que tem a capacidade de existir mesmo nos contextos menos favoráveis, sim, pode-se dizer que é viável produzir arte fora do Sudeste. Há, obviamente, inúmeras limitações institucionais e sociais por se tratar de um território economicamente menos privilegiado, onde o mercado não sustenta a cadeia produtiva da arte, produzindo desigualdades de acesso e de visibilidade quando em comparação ao Sudeste. Mas essas dificuldades nunca foram empecilhos para o surgimento e o fortalecimento de artistas, coletividades ou movimentos paradigmáticos que se alimentam de outras riquezas que não exclusivamente as do capital. Ao contrário, talvez a inexistência de institucionalidades e mercados tão fortes tenha colaborado para tornar mais diversa a “cena cultural” que logra alguma visibilidade em Pernambuco.

Por isso, a despeito do radical e programático sucateamento das instituições de Recife – a exemplo do irrisório orçamento de museus como o Mamam, da extinção de projetos como o SPA das Artes, da extinção de editais públicos ou do constante atraso de leis de fomento à cultura –, existem sim cenas resistentes a esse sistema desfavorável à criação. Projetos como a revista Propágulo e a MauMau Galeria dão a ver parte desses movimentos àqueles que se interessarem por eles. No mais, a presença de Iagor Peres – artista residente em Recife há alguns anos – neste ciclo do Pivô Pesquisa é uma clara evidência da força das pesquisas hoje em curso em Pernambuco.

 

LF: Assim como muitas mães, você tem um filho pequeno que está crescendo em meio à pandemia e ao confinamento. Qual poderá ser o efeito de uma situação dessas na formação da subjetividade/sensibilidade de uma criança?

 

CD: Hoje, passados quatro meses de distanciamento social, me espanto com a crescente adaptação de Zie, meu filho de cinco anos, às circunstâncias. Ainda que o hábito que vai sendo criado diante da impossibilidade de sair, de conviver, de estar ao ar livre, etc., possa de alguma forma acalentar as angústias iniciais do processo de isolamento, por outro lado ele me perturba de forma mais contundente. Pois é muito duro ver uma criança começar a “naturalizar” que o mundo “lá fora” é perigoso ou que o “outro” – e principalmente os “desconhecidos” – são, em potencial, um risco.

Lutar contra essa vocação adaptativa que faz com que nos conformemos até com as situações mais perversas parece ainda mais difícil quando estamos distantes das coletividades que nos dão força, ou que sobre nós agem como contraforça. Aos olhos do meu filho, uma criança privilegiada que tem podido ficar em isolamento – e, portanto, tem estado tomado pela intensidade da imanência dos dias confinados ao próprio lar –, o mundo parece cada vez mais ficcional, transformando a bolha social em que vivemos num dado tão concreto quanto inescapável. Educar como antídoto a essas percepções (por mais prematuras ou passageiras que sejam) faz parte das responsabilidades que me atravessam agora; enquanto, por outro lado, espero poder preservar o que, delas, é uma defesa estratégica e saudável contra a tortura de uma infância confinada.

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