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19:34 - 17/10/2023
ULTIMA ATUALIZAÇÃO::
Pivô entrevista Diego Araúja
Diego Arauja, QUASEILHAS, 2018, vídeoinstalação cênico-performativa. Foto: Shai Andrade

Partindo da intimidade, O Laboratório Internacional de Crioulo, de Diego Araúja, é um experimento em progresso que busca investigar as tensões linguísticas resultantes da experiência colonial, propondo, contudo, uma crioulização não nascida do trauma. O projeto para o Pivô Satélite integra a exibição digital Os dias antes da quebra, curada por Diane Lima. Trata-se de um ensaio multimídia que relaciona ética do quilombo com estética de game e tem o objetivo de contribuir para a criação de espacialidades e temporalidades alternativas àquelas impostas pela violência colonial.

 

 

Leo Felipe: Apesar da aspiração internacionalista, o LIC parte de uma experiência de intimidade, e tem uma influência de origem localizada na Península de Itapagipe com o crioulo doméstico falado por sua família. Como é possível criar uma língua não nascida do trauma?

 

Diego Araúja: De modo geral, com experimentação. Onde a intervalorização entre consciências negras exista numa temporalidade não regida pela sobrevivência. O “como”, enquanto princípio laboratorial, só será possível quando se iniciar um diálogo, para a fundação efetiva do LIC, com as futuras criadoras dessa língua. Digo que o LIC é um projeto de demanda. A existência de um laboratório se justifica pela demanda, neste caso, “criar uma língua não-nascida do trauma”. O que apresentei, enquanto ativação, foi o programa laboratorial, digamos assim. Esses princípios internos serão organizados a partir dos caminhos tecnológicos e criativos de cada pessoa envolvida no lab. Pelo menos pra mim, a demanda me exige atitude, performance sobre algo. Neste caso, um quilombismo. Ethos.

Gostaria de dizer algumas palavras sobre essa experiência de intimidade. O LIC parte dessa influência familiar e íntima, porque tudo que proponho em arte nasce dessa influência familiar e íntima. Sempre que crio ou projeto, volto para Alagados de Itapagipe. Lá é a casa e o ponto de partida – possivelmente num daqueles saveiros atracados na Avenida Porto dos Tainheiros ou, melhor, num barco de pescador, de onde é possível ver a Ilha do Rato. Essa minha possibilidade de existência poética se apresenta enquanto algo de indissociável. E se a intimidade ganha caracteres estéticos (quero dizer, se ela se transmuta no encontro que eu tenho com você) é devido ao meu desejo, também honesto, de estabelecer uma conexão, uma relação entre a minha consciência alagada com outras qualidades de consciências. Lá no game, existe um Aviso Importante “Na síncope do barulho terei aspiração de honesto contágio.” É quando alguns aspectos de minha intimidade não se bastam e, quando transmutados em valor estético, acabam trilhando dois caminhos. Na primeira trilha digo que “embora não exibidos, tudo aqui está exposto, sem criptografias. Logo, quero produzir junto com vocês. E se não há nada para ser lido, confirmo que sim, pois o desejo é de produção; e entendimento, análise, assim como nascer ou morrer, é a seguir”. Independente do êxito, é essa a boa vontade, de me relacionar com vocês de modo estético. Já na segunda trilha, deixo com o último verso do Aviso Importante, “e na elipse de minha mudez a consciência de se manter a salvo o que ainda sagrado e desconhecido.”

 

Diego Araúja, Holocausto Brasileiro Prontuário da Razão Degenerada, 2019, Teatro documentário e Cinema ao vivo. Foto: Taylla de Paula

LF: Você diz que hoje a fundação do LIC é impossível, dado nosso “trauma pandêmico”. Por isso, o que você apresenta no Pivô Satélite é um ensaio multimídia sobre suas motivações e referências. O ensaio é um jogo, que ao ser jogado, não visa necessariamente uma apreensão da totalidade de seu conteúdo. O que o levou a dar essa roupagem de game “escape room” ao projeto?

 

DA: Independente do formato futuro que o escrito apresentará, digo que tenho a impressão de que crio quando escrevo. Mas antes da primeira palavra grafada, sou puxado por uma dimensão. Tragado por um chão desconhecido. Mente evaporada por um clima avesso. É o corpo voltando para algum lugar do qual nunca continuou. Por isso estranha, e da estranheza se faz comover com a insignificância do que achava experimentado. Se envolve pelo que achava sabido. Antes da primeira palavra, é essa espacialidade, essa fenomenologia que se monta. Que me desmente dizendo que tudo estava pronto a eras. De que estou enganado se penso que crio, posto que só estou me lembrando. É um texto excessivo antes dos caracteres. Tudo isso acontece de modo rumoroso, diante da folha em branco.

A questão é que isso já tinha acontecido no que se refere ao LIC. O próprio espaço laboratorial é essa espacialidade e, diante do digital não conseguia me lembrar de nada. Laís Machado (artista aqui de Salvador e companheira de vida, e de arte) achou interessante a ideia de que a espacialidade para a exposição dessas motivações poderia ser um jogo eletrônico; vide a forma como eu estava organizando a possibilidade de apresentação desses fundamentos. Logo passei a completar a escrita, e alterar o que já estava escrito, para uma estrutura que, em algum nível, dialogasse com elementos dramatúrgicos.

A partir de outras consultorias, o formato escape room me pareceu interessante. Me remeteu a forma como proponho a interação em minhas obras instalativas e performativas. E você está certo quando diz que o escape room é uma roupagem no game do LIC. Pois nesse tipo de jogo o objeto maior é, justamente, sair de um lugar (casa, quarto, floresta, por vezes). Por isso que no cabeçalho eu coloco escape time. O pacto de interação que propondo com a jogadora-leitora é de um tempo específico de relação com o conteúdo. Um tempo que, se não for um tempo qualitativo, é, pelo menos, um tempo necessário para se estabelecer uma relação. Logo, o escape time é mais fora do jogo, ou seja, antes do start. Uma fuga do tempo social (cronológico) e do tempo da sobrevivência (se possível), para a interação com o game.

 

LF: Você comentou que o processo de elaboração do projeto o fez recordar as aulas de “dramaturgia para jogos eletrônicos”, do curso de artes cênicas. Fiquei bastante curioso sobre essa disciplina. Qual é a especificidade dramatúrgica do game?

 

DA: Sim, tive algumas aulas, mas não cheguei a me aprofundar. Acabei trilhando outro caminho com a escrita dramatúrgica e/ou narrativa. Mas, como um não-especialista, diria que a especificidade dramatúrgica está na proposta de jogabilidade que o desenvolvedor deseja, o tipo de experiência de usuário, digo. Para o dramaturgo, para que ele possa iniciar um processo de organização nesse contexto, me parece importante saber disso inicialmente: Qual seria a experiência do usuário? Também me lembro que neste período das aulas, o elemento estória nos games estava muito forte (principalmente no gênero RPG), gerando até um programa de iniciação científica com alguns graduandos. Logo, para além da necessidade de organizar as situações dramáticas num contexto de game, a composição do argumento da estória (o conto, a narrativa) era importante. Ou seja, era um trabalho anterior ao próprio trabalho dramatúrgico de roteirização.

 

LF: No que implica a efetiva fundação do LIC? 

 

DA: Como eu disse em algum dos áudios do game, a fundação do LIC é um engajamento. Acima de tudo, exige investimento. Motivado pelos dizeres de Salikoko Mufwene, endosso que a comunidade de prática linguística não é suficiente, é necessária uma dimensão espacial, ecológica; que interfere, corta, transversa as atitudes performativas. Quero dizer que pessoas não são suficientes sem espaço, registro, método e produção; se não, não estaríamos falando de um tempo qualitativo. Fundamentalmente, também exige a compreensão de que se trata de um projeto de experimentação estética, de língua e linguagem em afro-perspectiva, e à longo prazo. Um investimento sem medo da experimentação, do laboratório e do erro – este último, a única certeza da experimentação. O LIC, para além de possuir a demanda de “criar uma língua não-nascida do trauma”, é um território de criação de uma ferramenta artística. Ferramenta que busca marcar, do ponto de vista estético e historiográfico, a possibilidade de se criar uma linguagem e uma língua fora da temporalidade das mutilações físicas e psíquicas – condição dissimulada na experiência de um afro-brasileiro. Até o momento da publicação do Introdução a uma Poética da Diversidade (acho que o ano era 1995) Édouard Glissant escreve sobre acreditar na possibilidade de uma crioulização não nascida da violência. Contudo, ele procurava, mas não encontrava esses exemplos. Bem, assim como Glissant acredito nessa possibilidade – embora eu diga crioulagem, porque me diz mais sobre performatividade. Não sei se ele encontrou exemplares depois, mas gostaria de contribuir, dando esse exemplo, embora tardio.

Diego Arauja, QUASEILHAS, 2018, vídeoinstalação cênico-performativa. Foto: Shai Andrade

LF: O que é o processo Estética Para um Não-Tempo, que você dirige desde 2013?

 

DA: É a concepção de uma obra, geralmente em arte expandida, onde eu disponibilizo meus processos ou práticas geophagicas: tecnologias inventadas, assimiladas, cinicamente roubadas, por vezes falsamente ancestrais, outras dignificadas pelos antepassados, ficcionais ou abstraídas em meio a bebedeira de cafeína e politicamente expropriadas; organizadas numa dimensão estético-espacial. É este território, ou temporalidade contrária ao tempo da sobrevivência, que chamo de Não-Tempo. Tudo isso, com o desejo de favorecer, através de uma transperspectiva, a produção de consciências da carne emancipada.

 

LF: Considerando-se essencialmente um escritor, você tem desenvolvido os próprios conceitos que fornecem o fundamento teórico de suas práticas. Gostaria que você comentasse sobre as geophagias e as vibrações melódicas, dois conceitos-chave em sua pesquisa.

 

DA: É bom partirmos do entendimento de que “geophagia”, aqui, está em outro sentido. Para quem se relaciona com a história afro-brasileira, sabe que essa palavra ganhou sentido enviesado no Brasil. Pois a prática de ingerir terra se tornou um meio de libertação da pessoa escravizada através do suicídio. Logo, melhor do que ressignificar através do dado historiográfico, proponho um retorno ao seu sentido natural, a busca de outros nutrientes para o corpo.

Sendo assim, a partir dessa ética de retorno, Práticas Geophagicas (As Geophagias) não é exatamente um conceito. Acho que é até melhor partirmos do pressuposto de que não é – mesmo que possa ser. Logo, ela está mais para um exercício, que pode ser metodológico ou de análise (relação ou produção). Quando se instaura uma prática geophagica é como se déssemos conta dos banzos, da consciência traumática da carne. Havendo essa consciência, começamos a projetar um caminho, necessariamente poético, para a concretização de outras perspectivas de existência. Essa projeção, lógico, é metodológica, por vezes estratégicas ou, até mesmo, com uma violência taxiada, no sentido amoral da palavra. Em outra medida, é uma prática de relação, de cruzamentos de processos entre geophagicos, o que ocasiona, em seguida, uma análise, crítica mesmo. Diria até que praticar geophagias implica crítica – encarnada, bom salientar – seja durante o processo ou na relação entre processos geophágicos.

Chamei de vibrações melódicas a sonoridade nascida das vibrações psicofísicas de artistas do corpo ao se relacionarem com o oríkì – literatura oral de origem yorubana. É quando o corpo, a partir de um rigoroso exercício e de uma relação muito sensível com determinados impulsos de lembrança, ouve como o oríkì quer ser manifestado. Então, necessariamente, é uma questão de escuta, antes mesmo de ser uma questão sonora. De modo inicial, imagino que esse fundamento possa estear as primeiras iniciativas do LIC.

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