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19:46 - 17/10/2023
ULTIMA ATUALIZAÇÃO::
Thiago Barbalho

pós-palavra: pré-história: antirrazão

 

começo um dia de trabalho na Pivô Pesquisa

 

Chegar às onze horas. Tocar a campainha, anunciar meu nome, empurrar a porta de metal, agora destravada, fechar a porta, subir as escadas. Chegar ao estúdio às onze e quatro. Largar a mochila no chão, passar os olhos pelos objetos, canetas e desenhos, pegar a caneca e ir até a copa fazer café. Esperar a água ferver andando em círculos pelo espaço, chutando de leve o chão, o ar, as paredes. Talvez ouvindo música. Talvez não. Assobiar. Passar o café. Levar a caneca cheia de café até a varanda, sentar no banco encostado à parede, cruzar as pernas, dar um gole. Olhar o real. Perceber com os olhos viciados e cheios de conceitos inescapáveis, mas um pouco mais leves do que mais tarde, quando muitas horas de lucidez terão deixado um rastro de cansaço de memórias e significados. Por enquanto, perceber que a realidade é uma formação de camadas de eventos e objetos deixados. Perceber que a realidade não tem substrato, é toda camadas. Prédios recortados por outros prédios, uma árvore que se enfia entre um pedaço de concreto e outro, escadas, pessoas descendo escadas, gente indo a algum lugar, pombos, lojas, ruas, calçadas, cachorros, nuvens. Não saber o que vai vir ao desenho. Pensar que o trabalho com o desenho consiste em fisgar do inexistente alguma sombra de sua fluidez e trazê-la até o existente. Talvez como uma lembrança modificada, talvez como um espírito que incorpora e manda uma mensagem criptografada. Pensar que o desenho é a zona em que qualquer interpretação, desrazão, crença, loucura, pode ser exercida. Pensar que, no desenho, a imposição de camadas de formas e cores trazidas do inexistente ao existente pode, com alguma sorte, se transformar em impacto ou, ainda melhor, em espanto, e o espanto, por sua vez, servir de sussurro sobre a existência dessas formas que não existiam, mas agora estão aqui, e se agora existem é porque já existiam em algum lugar. Entender então que o desenho é o relato de uma viagem entre mundos. Aceitar que o gesto das mãos com as canetas sobre o papel é um exercício em que a geometria não material se comunica com nossa necessidade de enxergá-la. Pensar o desenho como a prova da materialidade do imaterial. Fantasmagoria. Aparição. Geoglifos. Hieróglifos. Saber que isso está com mais força em imagens do que em palavras. Entender então que, apesar de o trabalho do desenho ser similar à escrita, que com a mão desenvolve a produção de alguma coisa que nos reflete e amplia, o desenho tem a vantagem de não usar palavra, esta sempre sedenta por sentido, exausta dos clichês, das ironias, das ignorâncias viciadas, da sede de argumentar e convencer. Pensar que o desenho extrapola a ordem. Nenhuma palavra daria conta disso sem se contaminar com o desgaste com que a receberíamos. Aceitar, e louvar, que o desenho não tem sujeito, verbo, predicado, e que suas fronteiras são mais subversivas e apontam para o futuro, onde palavra nenhuma será necessária. E apesar disso, saber que o desenho é um desdobramento da linguagem escrita, cujo apoio estamos agora prestes a abandonar, obsoleto. E esse desdobramento se dá na medida em que a palavra chega ao seu limite e já é inútil. Uma escada pela qual subimos e logo poderemos jogar fora. Saber que uma transformação está se dando na linguagem e na necessidade humana de dizer. Que agora é como se o nosso desenvolvimento histórico fosse um reflexo de trás para a frente de si mesmo, uma espiral na melhor das hipóteses, e que já vamos abandonar a confiança nas palavras e suas explicações e sua relevância, e vamos voltar a nos deixar nortear por rabiscos nas paredes, cavernas de hoje, sombras capturadas por câmeras, formas no espaço, fotografias que se apagam em segundos, vídeos que evaporam em vinte e quatro horas, desenhos que mofam, tintas que desbotam, telas que desabam em atentados terroristas, instalações que somem num terremoto. Parar. Dar uma trégua ao pensamento. Voltar ao olho que vê o mundo daquela varanda, perceber que o café acabou enquanto olhava o mundo, sair da varanda, caminhar até o estúdio. Saber que a rede que avança no desconhecido e traz o traço e as cores ao desenho se chama não exatamente espírito, não exatamente sonho, não exatamente dom, não exatamente deus, não exatamente pesquisa, mas antes de tudo imaginação, dádiva sem autoria.

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