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Exposição
Corpo-Casa: Diálogos entre Carolee Schneemann, Diego Bianchi e Márcia Falcão

A partir do dia 6 de abril, prepare-se para visitar as obras cedidas pelo Carolee Schneemann Foundation apresentadas junto de obras inéditas de artistas expoentes da América-Latina.

06/04 - 07/07/24
Texto Curatorial
A exposição no Pivô não apenas celebra o legado de Carolee Schneemann, mas também expande suas ideias e propõe um diálogo entre seus trabalhos e dois artistas contemporâneos: Diego Bianchi e Márcia Falcão.
Por Fernanda Brenner

NÓS QUE ESTAMOS ABORDANDO OS TABUS NOS TORNAMOS O TABU. OS SUPRESSORES ESTÃO CONFUSOS. ELES NÃO CONSEGUEM DISTINGUIR IMAGENS DOS CRIADORES DE IMAGENS.

C. Schneemann. Em: The Obscene Body Politic, 1991.

 

Imagine um olhar não governado por leis artificiais de perspectiva, um olhar sem preconceitos, marcado por certa lógica compositiva, um olhar que não responde ao nome de tudo, mas que se permite conhecer e explorar cada objeto encontrado na vida por meio de uma aventura de percepção¹.

Imagine que certa vez, em 1975, uma bela mulher branca, de 36 anos, se colocou nua em frente a 300 pessoas e diligentemente extraiu um pergaminho de sua vagina. O texto que ela leu em voz alta dizia o seguinte:

“Conheci um homem feliz

um cineasta estruturalista (…)

ele disse que gostamos de você

você é encantadora

mas não olhamos para seus filmes

não podemos

há certos filmes que não podemos olhar

a confusão pessoal

a persistência dos sentimentos

a sensibilidade ao toque das mãos

a indulgência diária

a confusão pictórica

a gestalt densa

as técnicas primitivas”².

 

A mulher era Carolee Schneemann (1939-2019), e o cineasta estruturalista mencionado por ela não era Stan Brakhage – seu amigo e artista contemporâneo –, que parece ter escrito as palavras do parágrafo inicial para ela. Na verdade, Schneemann se referia a uma mulher: a crítica de cinema Annette Michelson, que a manteve fora do cânone feminista ao não mencioná-la nas aulas de cinema que conduzia na Universidade de Nova York (NYU).

O “corpo-olho-não-tutelado”³ era, para Brakhage, a própria Schneemann: uma força visionária e feminista influente, uma artista prolífica e de espírito livre, que inegavelmente foi um dos pilares das artes performáticas dos anos 1960 e 1970. No entanto, as razões da sua inclusão tardia no cânone da história da arte ocidental não é o tema desta exposição. Em vez disso, nosso objetivo é convidar (invocar?) sua mente e seu corpo inquietos de volta à conversa atual e compartilhar um espaço com as mentes e os corpos muito mais jovens, mas não menos inquietos, do artista argentino Diego Bianchi (1969) e da pintora carioca Márcia Falcão (1985).

As linhas de Interior Scroll eram, em seu tempo, críticas cruéis a trabalhos transgressores, como o de Schneemann. Aqui, no entanto, tornam-se um fio condutor e um elogio às implicações poéticas e políticas da ferocidade e do excesso. Os três artistas, cada um à sua maneira, optam pela tactilidade; seus trabalhos nos atingem no corpo, rompem os tabus da fisicalidade e implodem aquilo que o mundo civilizado-sanitizado-normativo trabalha tanto para suprimir. Para emprestar um termo usado por Schneemann, poderíamos dizer que os três artistas buscam uma cinética visceral ⁴ e que chegam às entranhas, ao interior dos corpos e das coisas sem jamais abrir mão da complexidade de seus temas.

A exposição Corpo-Casa foi concebida como uma colagem sinestésica e intemporal de obras que, em certo sentido, têm a mesma temperatura. O local da mostra foi, por dois meses, o local de trabalho de Diego Bianchi; seus arranjos improváveis de objetos encontrados e intervenções espaciais surgiram quase por geração espontânea. Todos os dias aparecia algo: pernas de plástico cortadas de manequins de segunda mão, tubos de metal, meias velhas, parafernália eletrônica e todo tipo de material de descarte que passasse pelo crivo rigoroso do artista. As criaturas de Bianchi, as imagens em movimento de Schneemann e as telas de grande dimensão de Falcão diligentemente negociaram seus lugares na arquitetura brutalista sinuosa que as envolve.

Bianchi emprega diversos materiais e escalas em seu trabalho; ao longo de sua carreira, transitou das três dimensões para duas e vice-versa. Ainda assim, seus métodos e interesses permanecem: “sou fascinado pelo tempo pelo qual as coisas duram, pelo modo como cuidamos dos objetos e aquilo que decidimos preservar. Vejo isso como um desejo de retardar o tempo”, diz o artista. Schneemann abraça a temporalidade estendida mencionada por Bianchi em suas imagens em movimento (algumas delas combinando mais de dois anos de material captado). Falcão, por sua vez, faz o mesmo com o seu processo laborioso de pintura. Assim como o trabalho de Schneemann, os gestos grandiloquentes da artista carioca nos engolem por inteiro. As duas não poderiam estar mais distantes em termos de idade e contexto, mas se encontram na forma como abordam o corpo feminino e a sexualidade, explorando seus desejos sem ambiguidade, vergonha nem sentimentalismo. A justaposição, a sobreposição e a fragmentação de corpos no espaço e o pensamento pictórico são os assuntos principais desta exposição.

A partir do encontro entre os três artistas, o Pivô se transforma em um refúgio, uma casa na qual a lógica vigente não se aplica. Para Bianchi e Schneemann, a casa é o ateliê, e o ateliê está em todo lugar, pois tudo – e todo corpo – pode ser material de trabalho. Falcão, por outro lado, vê a casa e seus arredores como parte de seu assunto final: o corpo feminino racializado – mais precisamente, o vocabulário do corpo feminino que transita pelas periferias e pelos subúrbios cariocas, onde cresceu e ainda vive e em que as violências racial e de gênero são sistêmicas.

Schneemann via os corpos como colagens – não apenas compostos de membros e partes, mas receptáculos vivos que carregam e moldam (consciente e inconscientemente) imagens e expressões do passado, presente e futuro⁵. Nesta casa peculiar que construímos seguindo suas coordenadas, tudo é material de colagem em potencial. Gatos vagam livremente em beijos infinitos, corpos, coisas e arquitetura se fundem como abstrações, e movimentos frenéticos estão por toda parte. Confusões pictóricas se acumulam no espaço, vestem manequins e preenchem enormes telas e bobinas de filme. Esses emaranhados improváveis de coisas e corpos são também convites para se tornar você mesmo um corpo-olho-não-tutelado.

Juntos, os trabalhos de Bianchi, Schneemann e Falcão formam um testemunho da materialidade cultural, identidade e experiência vistas à medida que o século XX passa para as primeiras décadas do hiperventilante século XXI. Eles nos provocam para pensar como nossos tempos moldam nossos corpos, modos de vida, identidades, interações e escolhas (quando essas existem). Tendo isso em mente, nada é dado como certo nem garantido. Por fim, adentrar essa casa-corpo também significa estar disposto a se desviar do caminho pavimentado.

 

 

(1) BRAKHAGE, Stan. Metáforas sobre Visão. In: Adams Sitney, Cinema Visionário: A Vanguarda Americana, 1943-2000. Oxford: Oxford University Press, 2002.

(2) Excerto de Kitch’s Last Meal (1973-1978).

(3) O termo olho/corpo vem de uma das séries fotográficas de série fotográfica de Schneemann, Eye Body: 36 Transformative Actions for Camera (1963), na qual ela integrou, em seu corpo nu, cobras, peles, espelhos fragmentados e outros objetos em uma ação ritualizada que visava suas “construções de pinturas” [painting constructions].

(4) Visceral kinetics.

(5) Carolee Schneemann – Body Politics Catálogo de exposição. Barbican. p. 15.

 

Artistas
Diego Bianchi

A prática de Bianchi propõe uma apoteose de situações cotidianas, como o descarrilamento do excesso humano e a ordem anárquica que se segue. Entre outras bolsas e prêmios, ele recebeu o concurso de artes Visuales – Fondo Nacional de las Artes Premio Azcuy, Museo de Arte Moderno em 2019. Suas exposições recentes incluem “Syntactic Tactic”, no Centro de Arte Dos de Mayo, Madrid, Espanha, em 2022; “Bienal de Performance 2021 (B.P.21)”, no Museo Nacional de Bellas Artes (MNBA), Buenos Aires, Argentina, em 2021; “Sauvetage Sauvage”, na Galerie Jocelyn Wolff, Romainville, França, em 2020; “The Stomach and the Port”, na 11ª Bienal de Liverpool, Liverpool, Reino Unido, em 2020.

Carolee Schneemann

Schneemann foi uma das artistas mais influentes da segunda metade do século XX. Seu trabalho pioneiro em uma variedade de mídias – pintura, filme, vídeo, dança e performance, instalações e palavra escrita – é caracterizado por uma experimentação formal radical e investigações críticas da subjetividade, do erótico e do tabu, de imagens de atrocidade e da construção social do corpo feminino. Schneemann foi o tema de inúmeras exposições e publicações ao longo de sua carreira de seis décadas, incluindo a retrospectiva “Body Politics” na Barbican Art Gallery, em Londres e “Pintura Cinética”, apresentada no Museu der Moderne Salzburg, no Museu für moderne Kunst, em Frankfurt, e no MoMA, em Nova York.

Retrospectivas de filmes e do seu trabalho foram mostradas no MOCA; Museu Whitney, Nova York; Centre Georges Pompidou, Paris; Reina Sofia, Madrid, e no New Museum of Contemporary Art em Nova York, entre outros. Publicações recentes incluem “From Then and Beyond” (Verlag für Moderne Kunst / Kunsthalle Winterthur, 2022), “Textos Não Coletados” (Primary Information, 2018), “Imperdoável” (Black Dog, 2015) e um livro de seus escritos iniciais. Schneemann possui títulos de Doutora Honorária em Belas Artes pelo CalArts e pelo MECA&D e em 2017, recebeu o Leão de Ouro pelo conjunto da obra na Bienal de Veneza.

Márcia Falcão

Márcia Falcão nasceu no Rio de Janeiro em 1985, cresceu no bairro de Irajá e habita os subúrbios do Rio de Janeiro. Baseando-se em sua própria experiência, as pinturas figurativas da artista apresentam representações expressivas do corpo feminino, destacando a complexidade do contexto social no qual ele está inserido, atravessado por uma paisagem dubiamente bela e violenta. O feminino, a maternidade, os padrões de beleza e a violência de gênero são temas recorrentes que perpassam suas pinturas, marcadas pelo gesto e pela fisicalidade. Suas exposições individuais incluem “Pai Contra Mãe”, no Instituto Inclusartiz, Rio de Janeiro, Brasil (2023); “Márcia Falcão”, na Fortes D’Aloia & Gabriel, São Paulo, Brasil (2022); “Márcia Falcão”, na Carpintaria, Rio de Janeiro, Brasil (2021) e “Para Além do corpo: nudez semântica”, na Galeria Aymoré, Rio de Janeiro, Brasil (2020). Entre as exposições coletivas nas quais a artista participou estão “A Parábola do Progresso”, SESC Pompeia, São Paulo, Brasil (2022); “MAR + Enciclopédia Negra”, MAR — Museu de Arte do Rio, Rio de Janeiro, Brasil (2022); “Crônicas Cariocas”, MAR – Museu de Arte do Rio, Rio de Janeiro, Brasil (2021); “Engraved into the Body”, Tanya Bonakdar Gallery, Nova York, EUA (2021) e “Ainda fazemos as coisas em grupo”, Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, Brasil (2020).

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