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17:52 - 29/02/2024
ULTIMA ATUALIZAÇÃO::
A tentativa de escrever um texto crítico somente com referências bibliográficas encontradas na biblioteca do Pivô Arte Pesquisa , de Ana Roman

1. A tentativa de escrever um texto crítico somente com referências bibliográficas encontradas na biblioteca do Pivô Arte Pesquisa

 

Não poderia ser diferente. Eu me propus, como autora, a usar o mesmo substrato de trabalho de Pedro Zylbersztajn: escrever este pequeno texto crítico a partir dos livros e materiais presentes na biblioteca do Pivô. Desde que comecei como curadora da instituição, em 2022, assisti às mudanças relativas ao uso do espaço: sua inauguração como lugar de leitura e pesquisa especializado em artes visuais e sua abertura para o público em geral; as negociações institucionais (e pessoais) para a consolidação do acervo; os eventos do Pivô Recebe, projeto no qual a biblioteca se transformava em cinema, palco para palestras e performances, ou espaço para lançamento de livros; e o próprio projeto um número conhecido (porém não divulgado) de rumores espalhados pelas páginas de uma biblioteca circulante, ao qual me dedicarei nos próximos parágrafos. O mais interessante nesse espaço de biblioteca sempre foi, para mim, sua versatilidade.
Ao ser procurada por Pedro Zylbersztajn, no fim de 2021, para a realização de um trabalho nesse local, fiquei entusiasmada, tendo em vista que o artista já tinha uma relação anterior com a instituição – foi residente no Pivô Pesquisa – e um estudo sobre o mundo dos arquivos, espaços de memória e lugares nos quais se concentram infraestruturas de informação e conhecimento. Aquela biblioteca sempre foi, para mim, um espaço por ser feito, e a proposta do artista se encaixava no coeficiente de indeterminação dado àqueles lugares de caráter experimental.
Pedro sugeria quase que uma segunda residência na biblioteca: ele se dispôs a passar tempo observando o espaço social e os protocolos existentes dentro daquele local e, a partir deles, conceber um projeto que emergisse dessa experiência e se espalhasse de forma descentralizada, como um rumor – por meses a fio, inclusive, chamamos o projeto de Rumor. Para mim, estava clara uma dimensão do acontecimento e a vontade do artista de criar, a partir das condições preexistentes da biblioteca, um sistema de circulação de informações sem controle definido, que permitisse às informações se moverem livremente, transformando-se e dissipando-se ao longo do tempo. Desde o começo, havia uma possibilidade de que o projeto fosse uma narrativa: algo que tivesse sido visto e presenciado por um grupo de pessoas.

 

2. O fantasma e o aposentado
Durante meses, Zylbersztajn dedicou horas a observar o sistema de catalogação, a organização nas prateleiras e os títulos que compunham o acervo da biblioteca. Além disso, testemunhou os processos de organização e reorganização constantes do espaço para abrigar aqueles eventos aos quais me referi anteriormente. Ao ser perguntado, o artista descreve sua presença ao longo dos meses do ano no Pivô como de um fantasma, ou de um aposentado: ambos transitam no espaço de maneira despercebida e, ao mesmo tempo, são detentores daquilo que mais tem valor na vida humana – o tempo. Zylbersztajn dedicou-se a folhear aleatoriamente livros e compilar imagens que serviriam de base para seus trabalhos em desenho e texto. Os arranjos de palavras, imagens e desenhos resultantes desse processo investigativo são o que passamos a chamar de rumores. Para descrevê-los, tomamos emprestadas as palavras do próprio artista: “Os elementos que compõem cada rumor são definidos a partir de um processo vasto de pesquisa na coleção, de onde derivam imagens selecionadas, fragmentos de textos e ideias, cujos significados se conectam de forma instável a partir de diferentes ordenações”.
Os rumores foram concebidos para habitar o espaço entre as páginas dos livros. E, à medida que tomavam forma, solicitaram tanto testemunhas de sua existência quanto cúmplices de sua difusão entre os livros. Foram pensados, portanto, três momentos nos quais o projeto ganhou dimensão pública: no primeiro deles, com duração de apenas um dia, os pequenos arranjos de papel foram distribuídos no espaço da biblioteca em uma expografia composta de prateleiras, mesas e outros mobiliários esvaziados de livros e deslocados de sua orientação original. Criaram-se esculturas-suportes para rumores, e aqueles que estavam presentes foram convidados a participar de uma espécie de ritual: a movimentação dos rumores dos suportes instalativos para dentro dos livros. Para o segundo e o terceiro momentos, foram propostos eventos e diálogos nos quais foram convidadas pessoas que estavam, de alguma maneira, presentes na biblioteca, como autores, editores, organizadores ou artistas cujos trabalhos foram mostrados nos seus livros.
No primeiro momento, os rumores conviveram (ou poderíamos até pensar que eles convocaram) com uma performance do artista Nolan Oswald Dennis, artista sul-africano com quem Zylbersztajn tem colaborado nos últimos anos. O evento consistiu no convite para um grupo de pessoas ler junto, pela primeira vez, um texto baseado na história do Complexo de Mapungubwe, na África do Sul. Como ponto de partida, Dennis propõe o que denomina arqueologia reversa, ou seja, uma recusa em tratar o passado como um recurso a ser extraído (da terra). E, em um segundo último momento, o artista convidou Flora Leite, Jandir Jr., Maira Dietrich e Paulo Pasta para escolherem outros volumes que fazem parte do acervo e apresentarem ao público algum tipo de comentário – de qualquer natureza – sobre eles.
Ao serem realizadas no contexto de um número conhecido (porém não divulgado) de rumores espalhados pelas páginas de uma biblioteca circulante, as duas últimas atividades foram fundamentais para a propagação dos rumores e, ao mesmo tempo, fizeram vir à tona debates relativos ao espaço da biblioteca como infraestrutura de informação e repositório de conhecimento: quais seriam os dados a considerar ao propor uma arqueologia da biblioteca? Talvez, além dos livros em si, das políticas de aquisição, estivesse ainda em jogo a própria terra na qual se instala o Pivô e a parcela de espaço escolhido para abrigar os livros. Ao ouvir falar dos rumores pela primeira vez, somos compelidos a espalhar sobre sua existência? Há um potencial de recusa que se inscreve em cada enunciado e segredo? Como dar a ver os rumores, diálogos silenciosos, as cadeias de influência que passam a existir quando os livros coabitam o mesmo espaço?

3. O que contam os rumores

            Após terem sido guardados naquela espécie de performance ou cerimônia de adeus, os rumores passaram a um estado de repouso: eles aguardam serem encontrados por um leitor desavisado, que busca, na biblioteca, a materialidade das coisas verbais, ou por alguém que obstinadamente os procura entre as publicações.

Sabemos que há leitores para quem os livros existem enquanto estão sendo lidos e mais tarde são apenas recordações das páginas e que sentem serem dispensáveis em suas encarnações físicas. Já outros ocupam os livros com os próprios rumores e sentem-se impelidos a rabiscar, rasurar ou anotar mesmo aqueles objetos que pertencem às coleções públicas. Nesse sentido, há uma possibilidade iminente de encontros entre os silenciosos rumores concebidos por Zylbersztajn e por outros que eventualmente tenham os livros em suas mãos.

Ao escrever este texto, dediquei-me à leitura de alguns trabalhos de Alberto Manguel sobre as bibliotecas. Li esse autor na época da faculdade, e algumas vezes em relação a Jorge Luis Borges, com quem ele conviveu por anos. Em um de seus últimos livros publicados no Brasil, Encaixotando Minha Biblioteca, o argentino narra sua mudança de casa e, simultaneamente, traça uma breve história das bibliotecas que foram concebidas como grandes receptáculos do conhecimento humano e chega a uma das máximas que me ajudam a entender minha compulsão com livros e também o mundo do colecionismo em geral: Colecionar é exercer controle sobre o que é insuportável. O autor chega a afirmar que as publicações são testamentos da impossibilidade de transmitir por inteiro o que nossa experiência apreende, e mais ainda, um potencial auditório de enunciação composto de uma

maioria silenciosaque pode ser mobilizado quando o leitor quiser.

Ao adicionar esses pequenos rumores aos livros da biblioteca, Zylbersztajn acrescenta prováveis enunciados a essa grande cadeia discursiva de vozes. Quais seriam as possíveis respostas dos leitores a essas indagações e notas inscritas nos rumores? Os próprios livros, ao conviverem com tais inserções, em um diálogo capa-capa e página-página, também não sussurrariam respostas inaudíveis, à primeira vista, ao visitante da biblioteca?

Os textos que integram e amarram cada arranjo de rumores são microficções documentais. Escritos porZylbersztajn, eles não se enquadram estritamente na categoria de verdade ou mentira, mas têm como foco o universo do arquivo, da documentação e da catalogação da memória, bem como a existência cotidiana nos espaços. Os textos abrangem uma variedade de tópicos, desde observações simples de elementos que existem na biblioteca até eventos que ocorrem durante a leitura ou na própria instituição. E, além disso, podem incluir delírios que partem de uma realidade hiperbólica, acelerando eventos do dia a dia até seus limites, tornando-os impossíveis, fictícios ou abstratos. Os textos tratam dos aparatos e comportamentos daqueles que frequentam seu espaço da biblioteca humanos ou não humanos. Ao conceber os rumores e recebê-los entre seus livros, a biblioteca, frequentemente vista como um reduto de silêncio, é evidenciada como um ambiente no qual os significados se interconectam entre as prateleiras. A disposição dos livros reflete esse diálogo entre eles e com os leitores.

 

4. O grande arquivo para os rumores

 

            Para escrever este texto, circulei tanto na minha biblioteca pessoal quanto naquela nas quais habitam atualmente os rumores: encontrei edições de livros comuns ou publicações que parecem intrusas dentro de um sistema de organização lógico, mas um pouco arbitrário. Esse simples olhar atento para as lombadas suscitou em mim uma série de lembranças sobre o momento no qual os livros foram adquiridos ou lidos. Ao realizar esse exercício, me lembrei e me identifiquei da maneira como Manguel descreve sua biblioteca: Um rebanho de páginas que guardavam a chave para o meu passado e instruções para o meu presente, assim como amuletos úteis para rituais cotidianos.

Nessas andanças entre prateleiras e estantes, me encontrei com o livro The Big Archive: Art from Bureaucracy, de Sven Spieker, adquirido há alguns anos, quando me propus a elaborar um projeto de pesquisa sobre arquivos e arte contemporânea. O autor identifica a máquina de escrever, as fichas, os papéis e cartões como tecnologias do arquivo. Ele explica: para o burocrata, arquivos contêm pouco mais do que lixo, documentos que não são mais necessários; para o historiador, por outro lado, o conteúdo do arquivo representa um corolário quase objetivo do passado vivo; já a arte do século 20 utilizou o arquivo de várias maneiras desde o que o autor chama de arquivo anêmicode ready-mades de Marcel Duchamp e as Salas de Demonstração de El Lissitzky até as compilações de fotografias feitas por artistas pós-guerra, como Susan Hiller e Gerhard Richter. No livro, Spieker propõe investigar o arquivo tanto como uma instituição burocrática quanto como algo semelhante a um laboratório de experimentos sobre a natureza da visão e sua relação com o tempo contingente. Os arquivos, no campo das artes, são alterados em resposta às mudanças nas tecnologias de mídia a máquina de escrever, o telefone, o telégrafo, o filme e, segundo o autor, são responsáveis por forjar uma específica visualidade para a relação com o tempo.

Logo na introdução do livro, Spieker faz uma interessante digressão a partir dos trabalhos time capsules de Andy Warhol e afirma: Os arquivos não registram tanto a experiência quanto a sua ausência: eles assinalam o ponto onde uma experiência está ausente do seu lugar adequado, e o que nos é devolvido em um arquivo pode muito bem ser algo que nunca possuí
mos, em primeiro lugar. Há uma parte de um arquivo que escapa ao controle do arquivista, além do arquivo[tradução nossa]. Na realização da instalação no Pivô, talvez o papel de Zylbersztajn tenha sido o de um arquivista e catalogador dentro do espaço da biblioteca. Talvez o trabalho tenha sido impulsionado pelo desejo de fazer algo que existisse em um limiar da invisibilidade e visibilidade espaço tão comumente habitado por alguns exemplares impressos, que constam em bancos de dados e, muitas vezes, passam anos sem serem vistos ou manuseados. Com incansável dedicação às monografias e livros teóricos sobre o campo artístico, ele conseguiu habitar os lugares aparentemente vazios entre as páginas e, de certo modo, propôs dialogar com eles. Apenas o artista conhece muitos dos segredos e das rasuras

inscritos nesses locais, tal que os rumores evidenciam e servem como um arquivo desses.

Ao nos depararmos com os arranjos de texto, imagem e desenhos, como já descrevemos anteriormente, circulamos por uma série de pequenas narrativas sobre o universo bibliotecário (talvez literário) e pessoal daqueles que convivem no espaço da biblioteca. Não há, entre eles, uma clara marcação de tempo: os fatos narrados poderiam ser contemporâneos a nós ou ter ocorrido no passado de longa data. Há certa arquitetura efêmera na composição dos próprios rumores, realizados com a utilização de clipes de papel e outras ferramentas de junção momentânea de elementos: a própria precariedade dos materiais de suporte e desenho (papel-jornal, papel-carbono), que vão contra o instinto de preservação do arquivo e que, em certo sentido, precisam estar escondidos dentro dos livros, fora de visão na maior parte do tempo, para continuar existindo.

Poderíamos afirmar que a instalação, assim como os rumores, tem duração incerta, pois depende de os livros da coleção se movimentarem por gestos dos leitores. Eu me arriscaria a dizer que o trabalho um número conhecido (porém não divulgado) de rumores espalhados pelas páginas de uma biblioteca circulante é uma reflexão sobre o tempo das palavras, dos textos e dos significantes de imagens e o ressoar dos burburinhos emanados pelos humanos e não humanos que convivem entre os livros.

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