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19:34 - 17/10/2023
ULTIMA ATUALIZAÇÃO::
Pivô entrevista Ana Raylander Mártis dos Anjos
Alex Sandro Duarte, Cibele Mateus e Ruanes Coelho. Foto: Ana Raylander Mártis dos Anjos e Linga de Acácio.

Em sua prática artística, Ana Raylander Mártis dos Anjos procura estabelecer um diálogo entre a história coletiva e a sua própria história, o que ela tem chamado de prática em coralidade. A artista e pesquisadora é autora do projeto a longo prazo Seminários Engraçados, que encerra a primeira edição do Pivô Satélite, propondo um conjunto de conferências gratuitas sobre o riso no contexto brasileiro e internacional. O projeto integra a exibição digital Os dias antes da quebra, curada por Diane Lima, em que a artista participa juntamente com Rebeca Carapiá, biarritzzz e Diego Araúja. De forma bem-humorada, Ana Raylander desafia a ordem do Deus Cronos, respondendo à entrevista a seguir de um ponto desde o futuro.

 

Leo Felipe: Investigar o riso no Brasil de 2020 é, no mínimo, uma proposta corajosa. Se, por um lado, este é um momento histórico em que parece não haver nada do que se possa rir, por outro, temos a impressão de que a realidade se tornou uma espécie de paródia de um programa de humor grotesco. Além disso, como você mesma pergunta: como é possível rir usando máscara. Por que é tão importante reivindicar o direito de rir? 

 

Ana Raylander Mártis dos Anjos: Leo, pode parecer que não, mas naquele ano de 2020 tinha muita gente dando risada. A desgraça de uns era o circo de outros, e a bem da verdade é que hoje as coisas dão trabalho parecido. Quem sobreviveu ao cheiro de morte daquela época sabe do que estou dizendo.

Se não me falha a memória, foi naquele ano de 2020 que dois policiais militares se desentenderam no centro da cidade de São Paulo, um apontou a pistola para o rosto do outro porque houve um atraso de 5 minutos a mais do horário combinado. Enquanto essa cena acontecia e era gravada, as pessoas do entorno davam risadas da situação e diziam frases como “mata ele”, “atira na bunda dele”. Esse caso revelou a complexidade e a impureza que existe no riso, revelou também que rir não está descolado do tempo em que vivemos.

Naquela época eu me perguntava em quais bases, ética e moral, o riso estava alicerçado. Olhando para trás eu vejo quanta coisa foi disputada através de gargalhadas nervosas, sorrisos insinceros e expressões de desespero. Hoje, em 2050, com o encerramento desses 30 anos de Seminários Engraçados, as urgências são outras e o riso também se tornou outra coisa. Entendi que rir é uma tecnologia, e talvez por isso seja importante disputá-la.

Arte: André Victor.

LF: Antes do riso, o choro foi o objeto de sua investigação artística. Há uma conexão entre estas duas manifestações emocionais que aparentemente ocupam pólos distintos, ambas percebidas por você como campos em disputa. Seria correto afirmar que você propõe a politização do choro e do riso?

 

ARMDA: Venho propondo, nessas últimas décadas, uma atenção à complexidade dessas manifestações, em todos os seus meandros. O riso e o choro nunca foram objetos de pesquisa somente. Seria mais coerente dizer que nesses anos eles foram ao mesmo tempo em que temas do trabalho, também materiais e ferramentas de trabalho. Temas, materiais e ferramentas se borram nesse sentido. Diria também que o riso e o choro formam rotas, que possibilitam investigar outros problemas do mundo, problemas esses que somos submetidas ainda hoje, em 2050. O choro e o riso são assuntos muitíssimo amplos, que não implicam em oposição. Por meio deles podemos estabelecer leituras sobre o mundo, como por exemplo leituras sobre o debate da saúde pública e do distanciamento social feito na época em que a primeira edição dos Seminários Engraçados estreou, no Pivô Satélite. Parece que foi ontem.

 

LF: Comente por favor o conceito que fundamenta o seu trabalho: as coralidades.

 

ARMDA: Eu tomo emprestado os termos coro e coralidade do teatro para fundamentar parte da minha prática, mas o que nos interessa aqui são as noções de ajuntamentos, aquilombamentos e colaborações que se estabelecem em termos de uma práxis. Embora não entenda o que faço como teatro, sempre me interessei pelas particularidades que atravessam essa linguagem e suas formas de negociação entre a história coletiva e a história individual. A dramaturgia, a palhaçaria, o monólogo, o coral e os festejos preenchem parte daquilo que os objetos de parede em uma exposição não dão conta. Na época dos Seminários eu partia dos estudos sobre os arrecifes de corais e de como esse cosmo se organizava para então pensar as práticas em coralidade. Os arrecifes são espaços biodiversos, onde inúmeros seres partilham suas existências. É também um lugar que implica disputa pela sobrevivência, muitos conflitos e transformações.

 

LF: Entendendo o museu como um lugar de subtração de corpos racializados e dissidentes, e o circo, como um modelo conservador, que blinda a possibilidade de sua própria descolonização, você propõe o reencantamento destes dois espaços marcados pelo lastro ocidental. O que está em jogo nesta proposta?

 

ARMDA: Antes de propor reencantar o museu e o circo, havia constatado que ambos ‘estavam’ espaços desencantados. Talvez, o que estava em jogo nessa proposta, eram as práticas que observávamos no coração desses espaços e as críticas que vinham sendo tecidas não somente por mim, mas historicamente.  Quando fundamentei, em 2020, o museu e a rua como um lugar de subtração de nossas presenças; e quando propus pensar o circo como um espaço que, embora nômade, resistia imóvel às investidas dissidentes e racializadas, estava dizendo que ambos os espaços sugam a energia de vida que mantém de pé o encantatório pelas bandas de cá. Acredito em um movimento de retorno ao encantatório, que não implica destruição. Me parece fazer sentido quando compreendo que, ao falar sobre a arte e a vida, em contexto brasileiro, falamos fundamentalmente sobre as resistências que se fazem no campo do tradicional e ancestral, dos festejos populares por exemplo.

Arte: André Victor.

LF: Existe um paralelo entre os Seminários Engraçados e O Laboratório Internacional de Crioulo, projeto de Diego Araúja para o Pivô Satélite. Ambos são projetos a longo prazo que buscam suas condições de efetivação em um futuro próximo. Você estipulou um prazo de 30 anos para a conclusão do seu projeto. Mesmo levando em consideração o fator “projeto recusado”, a que toda proposta cultural que busca financiamento está passível, não seria um arco temporal extenso demais? Do que e como você gostaria de estar rindo em 2050?

 

Em 2020 a expectativa de vida em que nós, mulheres trans e travestis, estávamos submetidas, de modo vertical e visceral, era de 35 anos. Na época eu costumava dizer que se tratavam de expectativas de morte, não de vida. Seguindo esse fio, o das expectativas de morte, 30 anos de projeto é sim um arco temporal muito grande. Mas com quais lentes olhamos e julgamos os trabalhos de artistas como eu e Araúja? Com as lentes de cronos? Quem esperava, senão eu mesma, que viveria o ano de 2050?

Acontece que eu tenho 55 anos agora, e isso é incontornável. A Ana Raylander Mártis dos Anjos tem 55 anos em 2050. Trata-se de alguém que prometeu, trinta anos atrás, fazer um trabalho de longa duração que implicaria, como condição primária, estar viva. Esse corpo torceu e brincou com o tempo cronos, revirando a sua consecutividade e linearidade como forma de revirar as expectativas de morte que pairam sobre os confins do mundo. É no tempo da promessa que o meu trabalho acontece, para ele 30 anos tem outras nuances.

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