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19:29 - 17/10/2023
ULTIMA ATUALIZAÇÃO::
Respirando livremente: Uma entrevista com Beatriz Santiago Muñoz por Caroline Godart
Respirando livremente: Uma entrevista com Beatriz Santiago Muñoz por Caroline Godart
Fernanda Brenner, diretora artística do Pivô, e Niels Van Tomme, curador do Argos, colaboraram com Beatriz Santiago Munõz na criação de uma nova versão instalativa de Oriana, o primeiro longa-metragem da artista, de 2022. Após uma apresentação inicial no Pivô em São Paulo, Santiago Munõz filmou cenas extras e estas foram adicionadas ao material original, criando uma experiência audiovisual intrincada através dos dois andares do edifício Argos, em Bruxelas (Bélgica). A exposição fica em cartaz em nosso parceiro até o dia 7 de maio de 2023.
Esta entrevista de Caroline Goudart com Beatriz Santiago Muñoz faz parte da mostra e do mergulho em Oriana e no processo de criação da artista. Ela foi traduzida para ser disponibilizada no site do Pivô.

CG: Seu último filme, Oriana, é amplamente inspirado no romance de Monique Wittig Les Guérillères, publicado em 1969. Quando você leu o livro pela primeira vez? Em que contexto? E que efeito o texto provocou em você?

BSM: Eu o li pela primeira vez durante a faculdade, na Universidade de Chicago. O livro foi indicado em um curso chamado Teoria Feminista, Prática Feminista, ministrado pela falecida Lauren Berlant. Quando o li pela primeira vez em inglês, fiquei chocada com o que o texto trazia no âmbito da forma. A experimentação de formas em Wittig realmente abriu uma maneira diferente de nomear o mundo para mim, e tentei entender sua mecânica, como era produzida e como funcionava. Adorei tanto o livro que acabei roubando o exemplar da minha colega de quarto. Foi a primeira vez que li algo que propunha um experimento formal que eu não precisava entender intelectualmente para que funcionasse. Minha fé em experimentações formais vem do meu encontro com esse livro, e mesmo que eu nunca tivesse pensado em transformá-lo em um filme, percebi que queria voltar a ele, compreendê-lo profundamente e criar um análogo dele.

CG: Sua relação com o livro evoluiu desde que você entrou em contato com ele pela primeira vez?

BSM

Sim, passou do amor visceral no início para uma lenta compreensão das questões filosóficas, e depois das questões técnicas. Ficou claro para mim que Wittig teve que resolver certos problemas com a técnica, que ela precisou tomar fortes decisões formais. Por exemplo, ela usa o pronome “elles” [elas] nos primeiros dois terços do livro: em outras palavras, ela cria um mundo onde “elles” é o sujeito assumido. O “he” [ele] vem depois e é um singular. É uma decisão muito técnica, ela claramente se perguntou que efeito isso teria nos leitores. Eu me pergunto o que ela pensaria a respeito das questões dos pronomes de gênero hoje. Ela tinha posições muito interessantes sobre diferença de sexo e linguagem, e eu só posso imaginar que seu pensamento teria continuado a evoluir se ela tivesse vivido mais, como estou certa de que ocorreu quando ela se mudou para o Arizona e foi confrontada com diferentes abordagens de questões raciais.

CG Que aspectos do livro foram importantes para você nesse processo de tradução de texto para filme?

BSM: Eu estava muito interessada na noção de Wittig de um sujeito coletivo, universal, feito de nomes singulares que se situa fora do binário masculino-feminino. Isso vai diretamente de encontro com as expectativas narrativas de um filme, onde você deve seguir um personagem e sua evolução. Existem muitos outros, alguns dos quais ainda não entendo. Wittig usa o pronome “elles” [elas], que é traduzido como “the women” [as mulheres] em inglês e em espanhol como “ellas”. Mas a própria Wittig disse que talvez “elles” deveria ter sido traduzido como “they” porque ela estava interessada em um além-gênero. Les Guérillères é historicamente fundamentado: foi lançado em 1969 e está enraizado em debates específicos sobre linguagem, como a usamos para construir o mundo, como ela nos aprisiona e o que pode estar além dela. Essas questões me interessam, mas é muito difícil transferi-las para um filme, pois nele uma imagem se desprenderá do signo muito mais rápido do que quando apenas em palavras. Tive que transformar as perguntas e as suposições por trás delas porque imagens funcionam de maneira diferente. Além disso, estou interessada no método de colagem que, como o texto, que não é linear, muitas vezes evoca o retalho: a princípio, o texto parece um mundo pós-guerra, mas então o tempo se torna cíclico e o texto se transforma em uma espécie de épico. Eu também queria transmitir a ideia de um tempo cíclico, um constante caminhar com o problema, como uma marcha rumo ao progresso. O sentimento épico do livro não vem de sua extensão, mas da abrangência de pessoas, nomes, experiências sensuais etc. Eu queria explorar maneiras pelas quais a performance pudesse transmitir essa ideia do épico, então incluí no filme momentos de fúria em colaboração com dançarinos. Também adoro o autoquestionamento que você encontra no livro, onde personagens farão rápidas reivindicações e, em seguida, questionarão imediatamente essas mesmas reivindicações. São movimentos filosóficos que acontecem em espaços-tempo muito comprimidos.

CG: Em Oriana, você queria produzir um vídeo análogo ao livro. Qual foi sua intenção e como isso difere de uma adaptação?

BSM: Eu só uso 800 palavras do livro no filme. Ao invés de uma adaptação no sentido clássico, meu propósito foi explorar as questões que o texto tenta responder em forma de filme. Comecei tentando descobrir quais eram as perguntas, depois tentei colocá-las cinematograficamente. Mas é claro, as perguntas não são claras, nem as respostas… Uma questão que achei fascinante foi a do sujeito coletivo e como ele poderia ser representado no filme: em contraste com os modos clássicos de caracterização, o sujeito coletivo não tem interioridade, nunca o abordamos através de close-ups que revelam estados interiores ou momentos particularmente expressivos, e não nos perguntamos qual pode ser o processo de transformação de um personagem específico. Eles são caracterizados apenas por suas ações e como se relacionam uns com os outros. De forma similar, não há uma fronteira clara entre uma pessoa singular e seu ambiente, seja a fruta que ela está comendo ou a água em que se banha: não há sujeito claro que possa ser abstraído do local. Enquanto fazia o filme, encarei cada ideia do texto como uma proposta, uma instrução que tentei seguir.

CG: Representar mulheres na tela sem objetificação, criar um sentido de desejo sem o olhar masculino é o desafio central das práticas cinematográficas feministas. Qual tem sido sua reflexão sobre esta questão? Que dispositivos e estratégias estéticas você desenvolveu neste trabalho?

BSM: Esta não é uma questão colocada no texto, mas claro que surge como uma demanda quando se trabalha com filme. Não tenho uma abordagem mais abrangente para isso: ao contrário, minhas estratégias são contidas e evoluem cena a cena. Vou dar um exemplo: no início do filme, há um momento em que os personagens tomam banho após a batalha. Eles estão recebendo os raios do sol, sentados no rio, seus corpos resplandecentes. Esta imagem contém uma atração sexual inegável. Mas como você a recebe depende de seu posicionamento enquanto espectador. Seguindo o pensamento de Wittig, quis apresentar ao espectador um sujeito universal que não é feminino nem masculino. Claro, isso só pode funcionar se o filme tiver criado um mundo em que um além-gênero seja possível — através, por exemplo, da aparência das personagens e da maneira como interagem. O que eu pretendia fazer era convidar os próprios espectadores a se identificarem com um tipo diferente de sujeito, para que incorporassem a condição de espectador de forma distinta. É isso que o livro faz: no decorrer da leitura do texto, você passa a se identificar como um tipo de sujeito diferente de quem você era até aquele ponto. E é por isso que este livro continua sendo tão importante: é um espaço onde você pode entrar e respirar livremente por um momento.

CG: O livro e o filme se passam na “Amazonian”, um espaço distante e imaginário para Wittig, mas para você a floresta tropical faz parte do lugar onde você vive e trabalha. Você pode me contar mais sobre esse processo de transposição?

BSM: Eu me senti convidada a pensar na interação entre pensamento e paisagem porque o texto tenta descrever todas essas tribos de mulheres em diferentes lugares. Mas, por vezes, as paisagens tropicais aparecem de forma um pouco simplória no texto: você imagina guerreiros se organizando com armas fantásticas, mas as descrições de seus arredores não são tão ricas quanto as dos lugares que Wittig conhecia muito bem, como a Alsácia. Ainda assim, ela tenta imaginá-los, o que me pareceu um convite para refletir sobre como suas ideias poderiam se transformar caso pensássemos nelas diretamente dos trópicos, de Porto Rico. O que acontece é que a ambientação e o grupo de mulheres que nós vemos transformam o centro imaginado do texto.

CG: Como você trabalhou com as atrizes?

BSM: Às vezes eu pedia que as artistas improvisassem, partissem de algo do texto, usando-o como base para imaginar outro tipo de fala. É aí que as diferenças mais marcantes entre o texto e o meu filme se situam, elas são mais perceptíveis nos momentos em que as atrizes estão falando e improvisando. A improvisação é crucial para mim, além de deliciosa: traz um sentimento de que outra pessoa está apresentando o filme para você. Adoro essas surpresas. Por exemplo, eu havia pedido a Ivette Román, uma performer vocal, que produzisse uma espécie de “canção do início da linguagem”. Ela criou uma performance incrível de 15 minutos de duração, em que gradualmente transforma sons muito básicos em uma espécie de hino. Aqui, como em outras situações, meu objetivo foi amplificar sugestões do texto, e nesse sentido não se trata de uma adaptação: o filme é inspirado no texto.

CG: Estou intrigada com as suas escolhas estéticas: de várias maneiras, o filme parece ter sido feito nos anos 1970.

BSM: Eu queria que parecesse que o início dos anos 1970 estava nos visitando. Adoro filmes de ficção científica daquela época e queria recriar essa estética através da utilização de efeitos muito simples. Por exemplo, a cena do cosmos foi filmada em um aquário. Eu queria ver quanto do filme poderia ser feito como um processo coletivo ao invés de um trabalho isolado de pós-produção. Eu costumo trabalhar com muito pouco, não uso sequer luzes artificiais, muito menos drones ou tomadas aéreas. O filme é produzido através de métodos muito simples: luz natural, uma câmera em um tripé, movimentos simples. É a riqueza do som que transmite a afetividade visceral.

CG Você pode nos falar sobre a trilha sonora, que é ao mesmo tempo linda e desnorteante?

BSM: A trilha sonora é feita de diferentes camadas. Joel Rodriguez, que fez o som direto durante as filmagens, adicionou uma segunda camada de efeitos sonoros posteriormente. A música foi composta e gravada por uma banda chamada Rakta, que é de São Paulo. Para o design de som, eu queria uma confusão proposital de escala e distância, de forma que o aquilo que você ouve pareça estar muito mais próximo do que a imagem sugere. Eu também queria criar relações entre ações e sons que não fossem necessariamente lógicas. Para mim, isso cria um “além”, uma espécie de espaço de ficção científica, e produz algo que as palavras em uma página também são capazes de produzir: achatar um signo ou explicitá-lo, criando uma espécie de distância brechtiana que subtrai a expectativa de naturalismo que uma câmera pode trazer. A música da Rakta também faz referência a materiais naturais, mas os conduz para uma espécie de ritmo épico. Eles criam uma escala épica com o som.

 

Esta entrevista é uma colaboração entre a argos e a publicação cinematográfica Fantômas. A versão holandesa também será publicada no site www.fantomas.be

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