No vocabulário da edição de cinema, o termo freeze-frame (1) significa isolar um quadro da linha do tempo estabelecida pela narrativa. O quadro ‘congelado’ chama a atenção para uma urgência ou para um ponto de inflexão na trama. É importante ressaltar que um freeze-frame é diferente de uma pausa. A pausa interrompe a ação ficcional e nos devolve ao tempo do mundo, ou seja, ao apertar o pause no controle remoto pausamos também o pacto de credibilidade estabelecido com a narrativa que nos dispusemos a acompanhar. O freeze-frame, ao contrário, cria uma outra camada dentro do espaço/tempo diegético e o complica, rompendo com a linearidade (1). O tortuoso ano de 2020 foi como uma espécie de freeze-frame no programa do Pivô, em que a realidade nos impôs uma mudança agressiva de ritmo resultando na reconfiguração de alguns pilares estruturais da instituição, sobretudo os que dizem respeito à maneira como construímos narrativas e nos implicamos nelas.
Esta nova dinâmica relacional que experimentamos desde o início da pandemia nos impeliu a abolir a divisão temporal-temática do programa e vê-lo muito mais como um cosmos composto por entrelaçamentos de práticas artísticas, visões interdisciplinares e transversais que não precisam tornar-se homogêneas para coexistir. E coexistir não significa pacificar. Partindo deste lugar, o programa do ano se articula ao redor do uso que as/os antropólogas/os Marisol de la Cadena e Mario Blaser fazem do neologismo pluriverso (2). Os pesquisadores defendem que advogar por um mundo em que cabem muitos mundos é uma maneira de reconhecer uma multiplicidade de visões e modos de viver sem que se exija que seus pressupostos sobre o real coincidam com os da razão ocidental e da ciência moderna ou, no caso de uma instituição de arte, com a estrutura do sistema da arte internacional e suas ferramentas de validação.
Abriremos o ano com uma exposição coletiva, Uma História Natural das Ruínas (3), em que a curadora Catalina Lozano propõe uma revisão da distinção moderna entre cultura e natureza a partir da obra de um grupo singular de artistas de diferentes contextos e gerações. Este projeto é visto como um ensaio panorâmico em que aparecem alguns pontos que serão aprofundados especificamente pelos demais artistas e curadores envolvidos na programação. O fio condutor proposto por Lozano é a ideia de uma antropologia para além do que se convencionou chamar de humano dentro de uma lógica colonial. A exposição reúne formas de representação que se dão para além da linguagem e especulam sobre como entidades não-humanas podem complicar interpretações antropocêntricas, retomar saberes ancestrais deliberadamente apagados e desmontar um modo de vida que se dá partir de uma mentalidade extrativista.
Há quase duas décadas, Paulo Nazareth também vem se dedicando a embaralhar e reconfigurar todos os mecanismos produtores de marcadores sociais e raciais, entre eles a família, o Estado-Nação e a própria cultura. Em sua exposição individual, que tenho o prazer de dividir a curadoria com Diane Lima, Nazareth apresenta o resultado de suas andanças propositivas pelas margens do Ocidente, a partir das quais ele mergulha na sua própria biografia para apontar objetivamente que a manutenção do mundo tal como o conhecemos depende da naturalização da violência estrutural e da exploração sistêmica de corpos dissidentes. Em paralelo, a artista Ana Vaz propõe um recorte de seus filmes-poema, entre trabalhos recentes e inéditos, em que investiga através de uma abordagem experimental e não linear da imagem em movimento, os efeitos visíveis e subjetivos do colonialismo em diferentes corpos, territórios e espécies.
Dois artistas que partem de memórias pessoais ou coletivas para investigar os seus efeitos no imaginário social encerram este percurso: Manuel Solano e Beatriz Santiago Muñoz. Nascido no México e radicado em Berlin, Solano, assim como Nazareth, parte de sua experiência individual como um corpo dissidente (no seu caso não-binário que perdeu a visão em decorrência de uma complicação provocada pelo HIV) para examinar como a cultura pop produz identidades conflitantes e molda sensibilidades. A exposição, com curadoria dos portugueses João Mourão e Luis Silva, apresenta, pela primeira vez no Brasil, um grupo de pinturas e instalações inéditas concebidas especialmente para o espaço do Pivô. Santiago Muñoz, por sua vez, ocupa o espaço da instituição com um recorte abrangente de sua produção recente. A artista performa um localismo radical através de filmes e instalações audiovisuais, em que entrelaça subjetividades e presenças da sua Porto Rico natal e de outros países da América Central em uma massa rumorosa de dialetos locais e imagens críticas e afetivas. A exposição, realizada em parceria com a 34a Bienal de São Paulo, oferece ao público uma oportunidade de conhecer mais a fundo a obra da artista, que também estará presente na mostra coletiva.
O programa de 2021 se inscreve em um pluriverso em devir, e como um freeze-frame que suspende o desfecho objetivo, nos convida à especulação livre. Trabalhamos com a certeza de que o campo das artes visuais é aberto e tem agência suficiente para contribuir para a quebra da coluna conceitual de um projeto de mundo que nos trespassa involuntariamente, para que este passe a ser só mais um mundo possível dentro de um pluriverso e não mais a estrutura autoritária que o invalida. Além dos nomes já mencionados, contaremos com a interlocução valiosa de artistas residentes (4) e curadores – Plataforma Explode, Catarina Duncan, Hélio Menezes, Victor Gorgulho e Raphael Fonseca – que se somam à nossa equipe neste exercício coletivo de imaginar e encampar propostas que anseiam mudanças tão profundas que parecem impossíveis. Mas, como uma instituição de arte incrustada em uma das cidades mais disfuncionais do planeta, saudamos o impossível e, diante de tamanha incerteza, seguimos nos dedicando a prover os pontos de partida conceituais, temporais, materiais e afetivos para que novas alianças interpessoais e interespécies se deem, e para que propostas artísticas, metafísicas, políticas e extra-sensoriais se materializem, encontrando ressonâncias ou discordâncias dentro e fora de nosso espaço físico e virtual.
Fernanda Brenner