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19:33 - 17/10/2023
ULTIMA ATUALIZAÇÃO::
Num outro nível de vínculo

No vocabulário da edição de cinema, o termo freeze-frame (1) significa isolar um quadro da linha do tempo estabelecida pela narrativa. O quadro ‘congelado’ chama a atenção para uma urgência ou para um ponto de inflexão na trama. É importante ressaltar que um freeze-frame é diferente de uma pausa. A pausa interrompe a ação ficcional e nos devolve ao tempo do mundo, ou seja, ao apertar o pause no controle remoto pausamos também o pacto de credibilidade estabelecido com a narrativa que nos dispusemos a acompanhar. O freeze-frame, ao contrário, cria uma outra camada dentro do espaço/tempo diegético e o complica, rompendo com a linearidade (1). O tortuoso ano de 2020 foi como uma espécie de freeze-frame no programa do Pivô, em que a realidade nos impôs uma mudança agressiva de ritmo resultando na reconfiguração de alguns pilares estruturais da instituição, sobretudo os que dizem respeito à maneira como construímos narrativas e nos implicamos nelas.

 

Esta nova dinâmica relacional que experimentamos desde o início da pandemia nos impeliu a abolir a divisão temporal-temática do programa e vê-lo muito mais como um cosmos composto por entrelaçamentos de práticas artísticas, visões interdisciplinares e transversais que não precisam tornar-se homogêneas para coexistir. E coexistir não significa pacificar. Partindo deste lugar, o programa do ano se articula ao redor do uso que as/os antropólogas/os Marisol de la Cadena e Mario Blaser fazem do neologismo pluriverso (2). Os pesquisadores defendem que advogar por um mundo em que cabem muitos mundos é uma maneira de reconhecer uma multiplicidade de visões e modos de viver sem que se exija que seus pressupostos sobre o real coincidam com os da razão ocidental e da ciência moderna ou, no caso de uma instituição de arte, com a estrutura do sistema da arte internacional e suas ferramentas de validação.

Ana Vaz, Pseudosphynx, fotograma 16mm transferido para HD e HD, 2020

Abriremos o ano com uma exposição coletiva, Uma História Natural das Ruínas (3), em que a curadora Catalina Lozano propõe uma revisão da distinção moderna entre cultura e natureza a partir da obra de um grupo singular de artistas de diferentes contextos e gerações. Este projeto é visto como um ensaio panorâmico em que aparecem alguns pontos que serão aprofundados especificamente pelos demais artistas e curadores envolvidos na programação. O fio condutor proposto por Lozano é a ideia de uma antropologia para além do que se convencionou chamar de humano dentro de uma lógica colonial. A exposição reúne formas de representação que se dão para além da linguagem e especulam sobre como entidades não-humanas podem complicar interpretações antropocêntricas, retomar saberes ancestrais deliberadamente apagados e desmontar um modo de vida que se dá partir de uma mentalidade extrativista.

 

Há quase duas décadas, Paulo Nazareth também vem se dedicando a embaralhar e reconfigurar todos os mecanismos produtores de marcadores sociais e raciais, entre eles a família, o Estado-Nação e a própria cultura. Em sua exposição individual, que tenho o prazer de dividir a curadoria com Diane Lima, Nazareth apresenta o resultado de suas andanças propositivas pelas margens do Ocidente, a partir das quais ele mergulha na sua própria biografia para apontar objetivamente que a manutenção do mundo tal como o conhecemos depende da naturalização da violência estrutural e da exploração sistêmica de corpos dissidentes. Em paralelo, a artista Ana Vaz propõe um recorte de seus filmes-poema, entre trabalhos recentes e inéditos, em que investiga através de uma abordagem experimental e não linear da imagem em movimento, os efeitos visíveis e subjetivos do colonialismo em diferentes corpos, territórios e espécies.

Beatriz Santiago Munõz, Binaural, film still, 2019

Dois artistas que partem de memórias pessoais ou coletivas para investigar os seus efeitos no imaginário social encerram este percurso: Manuel Solano e Beatriz Santiago Muñoz. Nascido no México e radicado em Berlin, Solano, assim como Nazareth, parte de sua experiência individual como um corpo dissidente (no seu caso não-binário que perdeu a visão em decorrência de uma complicação provocada pelo HIV) para examinar como a cultura pop produz identidades conflitantes e molda sensibilidades. A exposição, com curadoria dos portugueses João Mourão e Luis Silva, apresenta, pela primeira vez no Brasil, um grupo de pinturas e instalações inéditas concebidas especialmente para o espaço do Pivô. Santiago Muñoz, por sua vez, ocupa o espaço da instituição com um recorte abrangente de sua produção recente. A artista performa um localismo radical através de filmes e instalações audiovisuais, em que entrelaça subjetividades e presenças da sua Porto Rico natal e de outros países da América Central em uma massa rumorosa de dialetos locais e imagens críticas e afetivas. A exposição, realizada em parceria com a 34a Bienal de São Paulo, oferece ao público uma oportunidade de conhecer mais a fundo a obra da artista, que também estará presente na mostra coletiva.

 

O programa de 2021 se inscreve em um pluriverso em devir, e como um freeze-frame que suspende o desfecho objetivo, nos convida à especulação livre. Trabalhamos com a certeza de que o campo das artes visuais é aberto e tem agência suficiente para contribuir para a quebra da coluna conceitual de um projeto de mundo que nos trespassa involuntariamente, para que este passe a ser só mais um mundo possível dentro de um pluriverso e não mais a estrutura autoritária que o invalida. Além dos nomes já mencionados, contaremos com a interlocução valiosa de artistas residentes (4) e curadores – Plataforma Explode, Catarina Duncan, Hélio Menezes, Victor Gorgulho e Raphael Fonseca – que se somam à nossa equipe neste exercício coletivo de imaginar e encampar propostas que anseiam mudanças tão profundas que parecem impossíveis. Mas, como uma instituição de arte incrustada em uma das cidades mais disfuncionais do planeta, saudamos o impossível e, diante de tamanha incerteza, seguimos nos dedicando a prover os pontos de partida conceituais, temporais, materiais e afetivos para que novas alianças interpessoais e interespécies se deem, e para que propostas artísticas, metafísicas, políticas e extra-sensoriais se materializem, encontrando ressonâncias ou discordâncias dentro e fora de nosso espaço físico e virtual.

 

Fernanda Brenner

 

1. As cenas finais dos filmes Os Incompreendidos de François Truffaut (1959) ou Thelma e Louise de Ridley Scott (1991) são exemplos clássicos do uso do recurso freeze-frame.
2. In A World of Many Worlds (2018), Marisol de la Cadena, Mario Blaser.
3. Lista de artistas: Candice Lin, Cristiano Lenhardt, Daniel Steegmann Mangrané, David Bestué, Denilson Baniwa, Elvira Espejo Ayca, Janaina Wagner, Lina Mazenett & David Quiroga, Louidgi Beltrame, max wíllà morais, Minia Biabiany, Paloma Bosquê, Sheroanawe Hakihiiwe, Isuma.
4. Denise Alves-Rodrigues, Dudx, Juno, Laryssa Machada, Noara Quintana, Raphael Escobar, Yná Kabe Rodriguez, Julieta Tarraubella, Julia da Mota, Ariana Nuala, Bárbara Milano, Cafira Zoé, Camila Mota, Denise Agassi, Leandro Estevan, Maya Quilolo, Rafael Segatto, David Cevallos, Adriel Visoto, Gilson Plano, Luana Vitra, Maré de Matos, Marta Supernova, Victor Mota, Vulcanica Pokaropa, Walla Capelobo, Adriana Vignoli.
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