Pivô welcomes the project ‘Corpos d’Água’ by artist Erica Ferrari, supported by the Secretary of Culture of São Paulo, through a ProAC announcement. The title of the work indicates a characteristic that can be viewed as symbolic of São Paulo’s structural situation: the condition of its rivers. Fundamental to the foundation of the original village and decisive in the growth of the city that it would become, these rivers have undergone drastic alterations, just like the urban network that surrounds them. Starting from this initial theme, to consider this landscape in which we live is to ponder São Paulo’s historical and political complexity.
Erica intends to focus her study on the city’s central region, investigating mainly the area’s architecture and its ramifications in the lives of its inhabitants. The artist begins her project in the Pivô Research setting, a platform for the development of projects and artistic experimentation associated with Pivô, which will culminate in a public presentation of the works created in an exhibition running from August 2nd to 30th, 2014.
“Project realized with support from the Secretary of Culture of the State of São Paulo through the Program of Cultural Action, PROAC – Announcement no. 22 – 2013”
Sous les pavés, la plage!
O jargão dos movimentos sociais de Maio de 68 em Paris espalhou-se pelo mundo, fortalecido pela polissemia de seu enunciado, ainda que de difícil tradução. Podemos tentar: abaixo das pedras do calçamento arrancadas no confronto com a polícia nas barricadas, está a areia que faz perfeita analogia ao que há de descontrolado e informe sob a fina camada de ordem protegida pelo status quo da cultura, do estado, do mercado e da civilização. Ou então: sob a rigidez da vida orientada ao trabalho, reside a promessa de prazer idílico associado à praia e outras paisagens paradisíacas. Quem sabe: no subterrâneo dos planos e leis que ampliam e mantém a forma da cidade, encontra-se a força orgânica da natureza, com seus fluxos e transformações.
Aquela praia, entretanto, nunca emergiu. Paris voltou ao controle da força de Estado; os estudantes de todo o mundo são tão associados ao consumo como um dia foram ligados à revolta franca frente às instituições; as paisagens paradisíacas continuam sendo recobertas ou cercadas; os rios, córregos e morros são disciplinados pela força da engenharia e da construção civil. Em São Paulo, a frustração dessas metáforas de liberação soa demasiadamente familiar. No que tange à sociedade, 1968 foi vivido à sombra do estado de exceção militarizado e, no que tange à cidade, uma assustadora parcela da geografia, topologia, desenho hídrico e flora da região encontram-se submersas sob uma ou mais camadas de urbanização feita de forma rápida, voraz e descuidada.
Os rios, fundamentais “sujeitos ocultos” da paisagem paulistana, foram em grande parte canalizados, desviados, assoreados, invertidos e/ou retificados. Às vezes, convivemos ainda com os nomes dos rios, mas hoje eles pertencem a ruas e avenidas.
Erica Ferrari, artista, pesquisa sobre as histórias do que foi enterrado. As divisas de seus projetos recentes, “Corpos d’água” e “Estratigrafia”, indiciam o interesse pelo soterrado, seja por camadas geológicas, arqueológicas ou urbanísticas.
Fotografias de época (aqui, às vezes, uma foto de dez anos já pode ser chamada assim), mapas topográficos e plantas urbanísticas convivem em sua bancada de trabalho, lado a lado com os esboços em papel quadriculado ou os desenhos vetoriais do que serão seus painéis de madeira cobertos por pedaços de fórmica colorida – montados à maneira de colagens, marchetarias, pisos de cacos de ladrilhos ou mosaicos. São esses painéis que têm a oportunidade de articular as referências acumuladas pela artista. Sua proposição prevê que eles, de alguma forma, expressem a possibilidade de estar junto com a memória daquilo que foi soterrado pela construção da cidade.
É uma premissa desafiadora. Os painéis de Erica Ferrari são simultaneamente figurativos e gráficos. Compartilham com uma parcela do Art Nouveau e com o primeiro modernismo vienense a tendência a imbricar elementos que sugerem profundidade tridimensional com outros que recorrem à planaridade das padronagens e grafismos. Além disso, combinam as mais diversas cores e texturas de fórmicas, extrapolando os limites convencionais da elegância formal que bem ou mal está associada às escolas concretistas brasileiras. Ademais, remetem simultaneamente aos modos de produção automatizados pelas impressoras a laser que cortam suas peças e aos laboriosos trabalhos de encaixe, colagem e acabamento manual empregado na sua montagem. Também, embora sejam essencialmente bidimensionais, a espessura e a irregularidade do formato do quadro são por vezes tais que evidenciam sua qualidade objetual, tridimensional e reposicionável no espaço.
São, portanto, objetos que transbordam definições simples de suporte, estatuto, visualidade e forma. Têm peculiaridades demais em sua fatura e elaboração para que possam ser tomados como veículos diretos do que é pesquisado pela artista sobre os indícios no presente dos apagamentos do passado da cidade. Antes, parecem resultar de esforços em edificar imagens de refencialidade complexa, com signos indefinidos em sua temporalidade. As representações das águas submersas confundem-se com manchas e volutas irregulares. Os desenhos esquemáticos de edifícios e detalhes arquitetônicos podem tanto advir da observação do presente como dos documentos históricos ou da premonição da destruição futura.
Os painéis de Erica Ferrari criam com tudo isso um problema também para quem tentar afiliá-los a tal ou qual linhagem da arte brasileira. Sua figuração experimental da imagem da cidade poderia ser comparada às pinturas do espaço urbano de Tarsila do Amaral, mas o legado da artista moderna é demasiado otimista para que a aproximação se sustente. Sua virtuosidade como desenho e design poderia remeter à larga produção de Luiz Paulo Baravelli, mas este provavelmente repeliria o modo como a pesquisa fundamenta e organiza o processo de Ferrari. Já o interesse da artista pelo espaço urbano contemporâneo encontra equivalência em muitos dos jovens artistas de sua geração, mas o modo como isto se revela no trabalho é infinitamente mais indireto que na abundância de apropriações e deslocamentos de fragmentos da cidade que se encontra na produção brasileira recente.
É difícil saber onde isso irá parar, quais os desdobramentos visuais e conceituais que se seguirão às investigações atuais de Ferrari. No momento, parece mesmo que haverá algo a transbordar desde o interior do grafismo dos painéis realizados pela artista. Há alguma coisa que se recusa a caber em filiações ou formatos – talvez alguma “praia”, alguma natureza incontrolável –, que faz com que o olho do espectador fique sempre um pouco mais entre os detalhes e fragmentos das superfícies de seus painéis. Às vezes, é como se estivéssemos procurando por alguma chave de leitura que possa resolver a imagem como um conjunto uno, mas acabamos encontrando mais e mais fissuras por onde vazam ruídos com potencial de transbordamento.
No painel produzido em 2013 que foi levado ao espaço do Pivô e completa o conjunto dos trabalhos feitos durante a residência no centro da cidade, podemos encontrar – se olharmos com atenção – um sutil elemento que poderia muito bem propiciar uma amarração entre as várias figuras e grafismos presentes. Trata-se do mapa hídrico da cidade de São Paulo, arranhado delicadamente sobre as fórmicas coloridas. Não obstante, a delicadeza do desenho é tamanha que ele se esquiva em deixar em primeiro plano os parâmetros que informaram a pesquisa da artista. As águas, seja na figura, seja na paisagem, escorrem como pontos de referência quase invisíveis, à espera do dia em que poderão quebrar de um golpe o pavimento – o asfalto, a superfície.